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Ler, Refletir e Pensar: Líbia (um episódio da vida diplomática)

Nesse texto um toque pessoal que pode dar uma idéia das dificuldades de atuar em loco nas relações internacionais. O texto é de autoria do diplomata português, atual embaixador lusitano em França (e figura fácil nos textos que levam o título “Ler, Refletir e Pensar). O texto é transcrito com autorização do autor e com o devido link ao final.

Líbia

Os acontecimentos na Líbia recordam-me, inapelavelmente, outros tempos.

Num final de tarde de 1977, à chegada a Tripoli, tudo começou a tornar-se-nos estranho, logo à saída do avião. O funcionário líbio que aguardava a delegação portuguesa, com uma cara de poucos amigos, acompanhou-nos, sem um gesto de menor simpatia, para a longa fila que antecedia a verificação dos passaportes. E aí nos deixou, indo colocar-se do lado de fora da infernal alfândega. Por lá nos aguardava, passada que foi uma boa meia-hora de trapalhadas burocráticas. Bela ajuda!

A delegação técnica portuguesa, que eu integrava, era composta por três elementos. Vínhamos mandatados para colocar as assinaturas finais nos protocolos para obras de construção civil e obras públicas que, desde há uns meses, estavam a ser negociados entre entidades portuguesas e a administração líbia.

Tudo começara no ano anterior, em 1976. Uma missão oficial líbia, que se deslocara a Lisboa para um congresso partidário, fora recebida protocolarmente no Ministério dos Negócios Estrangeiros, pelo secretário de Estado, João Lima. As relações entre Lisboa e Tripoli eram mínimas. A Líbia tinha uma embaixada em Lisboa, chefiada por um encarregado de negócios, mas Portugal não tinha qualquer representação na Líbia. E foi com alguma surpresa que vimos então entrar alguns membros da delegação líbia, sobraçando uns estranhos tubos de cartão (lembro-me de um comentário: "serão tapetes?"). O mistério iria esclarecer-se, minutos depois: os visitantes traziam projetos de obras públicas, para a construção das quais pretendiam contratar empresas portuguesas. Era a forma como queriam demonstrar o interesse em reforçar as relações bilaterais.

A capacidade lusa de improviso torna-nos, embora raramente, capazes de ações expeditas e eficazes. Foi o que aconteceu. Em poucas horas, montámos um programa para a delegação, com a tradicional visita ao LNEC e a algumas empresas. E, também com uma incomum prestreza, cerca de um mês e pouco depois, por decisão do ministro José Medeiros Ferreira, uma delegação portuguesa, creio que composta por 8 pessoas, de diversos setores técnicos (engenharia, banca, obras públicas) partiu para a Líbia.

Fui encarregado de representar o MNE nessa delegação. Eu era então um jovem diplomata, com pouco mais de um ano de casa. E logo constatei, com o orgulho dos novatos, que iria ser o primeiro funcionário diplomático português a visitar, em representação do MNE, esse país do Magreb.

Essa visita de 1976 durou quase 20 dias e os seus resultados não podiam ser melhores. Conseguíramos lançar as bases para uma futura presença empresarial portuguesa na Líbia. Recordo que fomos então recebidos com "tapete vermelho", desde a chegada ao aeroporto até à nossa partida, rodeados de todas as atenções.

Precisamente pelo contraste com esse precedente, os três integrantes desta nova missão, que haviam feito parte da delegação anterior, estavam muito surpreendidos com a frieza com que, menos de um ano depois, estavam a ser tratados. E mais admirados ficámos quando, em lugar do razoável hotel onde antes nos haviam colocado (Tripoli não tinha, à época, boas instalações hoteleiras), nos enviaram para um subúrbio, bastante distante do centro, onde nos foi proporcionado um alojamento bem medíocre.

Durante três dias, fomos sujeitos a um completo isolamento, agravado pela retenção dos passaportes e dos bilhetes de avião. Além disso, não havia então telemóveis e as comunicações telefónicas com Lisboa revelaram-se impossíveis. A nossa perplexidade era imensa. Estávamos totalmente sem contactos, num país de língua estranha, havíamos perdido já as reservas de voos e, acima de tudo, ninguém nos dizia nada. Restava-nos ir testando as diferenças entre o "couscous" do almoço com o "couscous" do jantar e medir a muito discutível qualidade dos refrigerantes que nos serviam, constatada, como é óbvio,  a rigorosa impossibilidade de acesso a qualquer álcool.

Até que, ao final do quarto dia, apareceu para me ver o antigo encarregado de negócios líbio em Lisboa. Em termos veementes, manifestei-lhe o nosso desagrado e a nossa surpresa com o acolhimento que nos estava a ser dado, em completo contraste com o do ano anterior. E perguntei-lhe, de forma um pouco brutal, se, como parecia, estávamos a ser "reféns" e de quê.

Senti que o homem ficou um tanto tocado com a minha forte reação, a qual, aliás, tinha por objetivo evitar que ele fosse confrontado com o estado de bem maior exasperação do chefe da delegação, que tencionava fazer um "casus belli" da situação bizarra em que nos encontrávamos.

E foi então, na conversa com esse colega líbio, que percebi, a razão de tudo.

- Você deve compreender que, depois das declarações portuguesas em Copenhaga, tenha havido uma reação da nossa parte, disse-me o diplomata.

- Declarações em Copenhaga? A que é que se está a referir?

- Então não sabe?! O seu primeiro-ministro anunciou, durante uma reunião da Internacional Socialista, na Dinamarca, que Portugal ia estabelecer relações a nível de embaixada com Israel. O mundo árabe e o meu governo ficaram ofendidos, claro!...

Assim fora, de facto. O Dr. Mário Soares decidira o início de uma mudança de política face a Israel, a qual, aliás, não deixaria de ter algumas consequências políticas internas, levando (entre outras razões, ao que parece) à demissão do ministro Medeiros Ferreira (ver aqui). Mas a última coisa com que o Dr. Mário Soares sonharia é que, no dia seguinte àquela sua declaração, uma delegação portuguesa ia aterrar no maior adversário norte-africano de Israel!

Fiz ver ao meu colega líbio a insensatez da nossa "quarentena" - a qual, repeti, a nossa delegação quase era obrigada a interpretar como um "rapto", dado que, sem bilhetes nem passaportes, estávamos tecnicamente impedidos de sair do país. Assim, para além das consequências práticas para aquilo que nos tinha levado à Líbia, adverti de que estavam criadas as bases para um "sério incidente diplomático".

Creio que o diplomata líbio mediu bem a situação e disse ir fazer o possível para a resolver de forma expedita. E fez. Para a história (com "h" pequeno), acabámos por ser recebidos logo no dia seguinte, assinámos os acordos, embora com alguns curiosos incidentes de percurso à mistura, que não vêm para o caso.

Depois dessa visita, muitas obras públicas foram construídas na Líbia por mãos portuguesas, naquele que foi um excelente exemplo de "diplomacia económica", embora com alguns quase "reféns" à mistura...

Como disse, os tempos são hoje outros, lá pela Líbia. Eu recordei os meus.

Fonte: http://duas-ou-tres.blogspot.com/#ixzz1F2hPMpF6

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