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A candidatura Dilma e a política externa: Uma contundente análise de Celso Lafer

O texto a seguir é uma peça opinativa/analítica do ex-ministro de Relações Exteriores e autor consagrado por seu notório saber Celso Lafer. Que foi retirado do jornal “O Estado de São Paulo”. Não gosto de violar direitos autorais da grande imprensa. Contudo, faço desta vez com base nos princípios do fair use (que não acho que sejam reconhecidos na legislação nacional) por que o texto referido além de seu valor opinativo tem valor educativo e contribui para o debate que é levado a cabo nessa página.

Muitos dos argumentos são os mesmos que sustento principalmente no tratamento da política externa como política pública, assim sendo seu debate uma necessidade institucional e democrática. E mais ele com a elegância de sua escrita nos lembra que os princípios da administração pública (economicidade, impessoalidade e publicidade) são também obrigatórios no campo das ações exteriores. Contudo, não transcrevo apenas por que é uma opinião que concorda com as minhas e sim por que o professor agrega informações que como disse são úteis para o debate que travamos aqui.

O título do artigo de Celso Lafer pode parecer despropositado ao incluir a candidatura Dilma e em seu corpo não incluir posicionamentos dessa campanha sobre política externa, embora uma análise do discurso da campanha petista revele que esta tenta (aparentemente com sucesso) vincular que será um governo que manterá intocadas as diretivas do atual governo. Claro sempre haverá quem vê em qualquer crítica feita ao governo (principalmente nesse período) conotação eleitoreira (feita a partir de paixões políticas) e essa possibilidade é real. Assim é preciso usar o discernimento e observar a qualidade dos argumentos. Esse juízo deve ser feito por cada um de vocês no uso de suas capacidades cognitivas. Sem mais comentários transcrevo o texto.

Celso Lafer
O Estado de S.Paulo, 18 de setembro de 2010

“Nunca, jamais, na História deste país” - para evocar o bordão preferido do presidente Lula - um chefe de Estado se dedicou a mobilizar tantos recursos para favorecer a sua candidata numa eleição presidencial. Na campanha, o tema recorrente do presidente tem sido a importância da continuidade do que entende ser a inédita qualidade do seu governo. Essa continuidade a candidata Dilma Rousseff, por ele ungida como um seu Outro Eu, teria o dom de levar adiante, até mesmo em matéria de política externa. Assim, no debate democrático sobre as opções que o País tem pela frente, cabe uma discussão sobre a qualidade da diplomacia lulista.

A política externa é uma política pública, como o são a da saúde e a da educação. Como política pública, a política externa tem como objeto traduzir necessidades internas em possibilidades externas. Por essa razão, na sua formulação e execução, precisa lidar com dois grandes desafios: o de definir adequadamente necessidades internas e o de avaliar, com discernimento, as possibilidades externas. A análise da política externa do governo do PT passa, assim, por um exame de como foram tratados esses dois desafios.

O Brasil não enfrenta problemas de segurança de envergadura, como países do Oriente Médio ou da Ásia, que estão mais próximos dos riscos da situação-limite paz/guerra. Por isso, pode considerar o desafio do desenvolvimento nacional, na sua abrangente sustentabilidade - econômica, social, política, ambiental, de inovação e conhecimento -, como sua grande necessidade interna. Cabe lidar bem com esse desafio, que significa ampliar o poder de controle da sociedade brasileira sobre o seu próprio destino, numa era de globalização, na qual o mundo se internaliza na vida dos países, inclusive no capítulo dos riscos (por exemplo, tráfico de drogas, crises econômicas, mudanças climáticas).

Para discernir o que o mundo pode contribuir para o desenvolvimento do País é preciso bem entender o cenário internacional e a sua complexa agenda. Esta contempla os temas da guerra, da violência, da segurança coletiva, da economia, do comércio, das finanças, do meio ambiente, dos direitos humanos e da democracia, das forças centrífugas das identidades e dos particularismos. Do bom entendimento da "máquina do mundo" provém a boa avaliação das possibilidades externas da ação diplomática de um país, na especificidade de suas circunstâncias. Nessa avaliação é preciso evitar dois riscos opostos: o da inércia omissiva do subestimar-se e o da inconsequência do superestimar-se. Isso exige levar em conta que são tarefas da política externa identificar interesses comuns e compartilháveis, lidar com as desigualdades do poder e ter condições de mediar a diversidade cultural e o conflito de valores.

A minha crítica à diplomacia lulista é dupla. Entendo que, com consequências negativas para o País, não definiu apropriadamente as necessidades internas e não avaliou corretamente as possibilidades externas.

Quanto ao primeiro item, aponto que a política externa do governo do PT se voltou para a busca do prestígio, com foco no prestígio do presidente. Uma diplomacia de prestígio e de gestos é menos atenta à falta de resultados. Não atende ao princípio constitucional da impessoalidade da administração pública, pois converte a política externa numa política de governo voltada para, partidarizando, capitalizar no Brasil e no mundo os personalíssimos méritos do presidente. Desconsidera, igualmente, o princípio constitucional da eficiência da administração pública, pois a indiscriminada abertura de novas embaixadas e de consulados-gerais, assim como a exagerada ampliação das vagas de ingresso na carreira, obedece ao afã da acumulação do prestígio, e não a critérios de necessidade objetiva.

Quanto ao segundo item, registro que toda política pública requer uma clara definição de prioridades - governar é escolher, como dizia Mendès-France.

Pressupõe uma gestão de riscos inerente ao campo específico de sua atuação. A diplomacia de prestígio e o voluntarismo da política externa lulista não fizeram nem uma coisa nem outra, em função de uma dupla falta da medida na avaliação das possibilidades externas do País. Na busca do inefável prestígio, ora superestima, ora subestima o que o País pode fazer. São exemplos da inconsequência do superestimar-se a ação brasileira no caso do Irã e no de Honduras e os reiterados insucessos das candidaturas a posições internacionais. São exemplos do subestimar-se omissivo, que também se traduz em não escolher os campos de atuação em que o nosso país pode encontrar melhores oportunidades para se afirmar no plano internacional, a resistência a desempenhar um papel mais relevante na área ambiental (na qual o Brasil é uma grande potência), a insensível negligência em matéria de direitos humanos, o descuido na negociação de acordos comerciais regionais, a complacência política no trato dos desvios de rota do Mercosul como processo de integração.

A diplomacia lulista, em razão dos equívocos acima apontados, vem descapitalizando de maneira crescente o soft power da credibilidade internacional do Brasil, comprometendo, desse modo, o próprio prestígio do País. Esta situação vem sendo agravada pelo empenho do presidente em construir amigas parcerias com regimes permeados pela iniquidade do arbítrio (por exemplo, o Irã de Ahmadinejad). A continuidade desta diplomacia é indesejável. Não contribuirá para a sustentabilidade da ação externa brasileira num cenário que se avizinha como mais complexo, seja no contexto das tensões da nossa vizinhança, seja no campo multilateral, seja no jogo das grandes potências, no qual despontam as novas parcerias da China e da Índia com os EUA.

PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP, MEMBRO DA ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E DA ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS, FOI MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES NO GOVERNO FHC.

Comentários

Anônimo disse…
Campeão, mais atenção com a pontuação. O conteúdo esta ótimo.
Mário Machado disse…
Obrigado pelo "Puxão de orelha". Tenho falhado lamentavelmente em revisar meus textos. Algo que devo sanar em breve.

Volte sempre.

Abs
Aniceto Lopes disse…
A verdade é que estamos entregue à sorte.
Com essa trupe de despreparados e incapacitados no Governo da Republica o Brasil está entregue a sorte.
Uma democracia que vai eleger uma assaltante de banco, uma torturadora, uma ditadora.

O brasil so regressa
Unknown disse…
Dá medo de imaginar o resultado destas eleições..
Seja no cenário nacio0nal, seja no internacional..
Parabéns pela iniciativa de divulgar o presente texto!
Parabéns!

;D

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