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Uma história sobre asilo diplomático

Francisco Seixas da Costa é embaixador português, em França, mas já ocupou o mesmo cargo em Brasília, onde tive o prazer de conhecê-lo, num agradável coquetel de lançamento da Pacta Consultoria.

Foi um grande prazer descobrir que o douto embaixador é um adepto entusiasmado da blogosfera, alimentando diariamente seu delicioso blog ‘Duas ou três coisas’. O embaixador tece ocasionalmente comentários breves sobre as situações da conjuntura internacional com os cuidados que se espera de alguém que ocupa tal função para seu Estado.

É sempre muito bom ler análises tecidas por aqueles que são agentes e testemunhas da história, muito embora, tenhamos que fazer uma leitura crítica e por vezes cética, sem aqui acusar o embaixador ou qualquer diplomata de alguma coisa é apenas o exercício da prudência.

Mas, não são as análises internacionais que chamam a atenção no blog do embaixador, mesmo por que não se pretende exclusivamente a isso a página, verdadeiramente deliciosas são as histórias que são compartilhadas conosco, são pequenas histórias que compõem o anedotário das Necessidades* e alguns testemunhos que além de nos lembrarem da dimensão humana das Relações Internacionais dão verdadeiro testemunho as habilidades literárias do autor e que eu demasiadamente invejo. Abaixo vai uma dessas histórias a respeito de temas muito em voga no noticiário. (O original pode ser visto aqui)

*Nome do palácio que serve de sede para a diplomacia lusitana.

Asilo

Francisco Seixas da Costa

Por um daqueles mistérios que as relações internacionais encerram, Cuba mantinha em Lisboa uma representação diplomática no tempo da (nossa) ditadura, dedicada à promoção comercial. Nenhum outro país do mundo comunista o fazia, com exceção da Jugoslávia. Era num (julgo que 2º) andar perto da Estefânia, que, além de outros ocupantes, tinha uma loja de artigos elétricos no rés-do-chão. Recordo-me bem de por lá ter passado, no final dos anos 60, a procurar recolher alguma "literatura" política (no que eram de um parco proselitismo, registe-se).

Fugido do hospital Curry Cabral, onde estava internado sob prisão, Manuel Serra, um dos protagonistas do chamado "golpe da Sé"*, um frustrado movimento insurrecional contra o salazarismo ocorrido em 1959, que antes havia sido sujeito a bárbaras torturas da polícia política, obtivera um dia asilo nessa representação cubana. A PIDE montou tocaia permanente ao local e os seus agentes passaram a revezar-se, no passeio do prédio, vigiando a porta, para impedir uma fuga de Serra. Este assomava, com regularidade, à varanda, com um ar provocatório, fumando charuto, com uma cabeleira longa e uma barba que há muito tinha deixado crescer, o que lhe dava um ar de guerrilheiro da Sierra Maestra, aliás bem adequado ao sítio de acolhimento. A provocação ia mais longe: Serra cuidava em expelir, com maestria e pontaria, algumas secreções bucais na direção dos "pides", acertando por vezes em alguns deles. E fazia esta "graça" com irritante regularidade... 

Um dia de 1960, a cena repetiu-se e um "pide", mais distraído, recebeu um desses "brindes" do barbudo galhofeiro da varanda, na ocasião vestido com uma vistosa camisa encarnada (Serra preferiria dizer vermelha, pela certa). Mal o "pide", furioso, acabava de se limpar, saiu da porta ao lado do estabelecimento comercial um padre**, de sotaina e cabeção, que, simpaticamente, o saudou com um cumprimento de cabeça. Esse sacerdote pálido, de cabelo curto e empastado, todo de negro vestido, caminhou lentamente para o jardim Constantino, desaparecendo nesse final de manhã de Lisboa.

O que o "pide" não sabia é que o "padre" era, nem mais nem menos, Manuel Serra, o qual, em poucos segundos havia cortado as barbas e o cabelo, mudado de roupa e descido as escadas. Para se escapulir, contara com o contraste entre um aprumado "sacerdote" e a imagem desgrenhada e colorida do revolucionário que permanecia na memória visual recente do polícia.

Serra conseguiu fugir para o Brasil mas, tempos depois, voltou a Portugal para integrar a direção do chamado "golpe de Beja", uma nova (e também fracassada) tentativa de derrube do regime. E voltou a ser preso, por mais sete anos, depois de fortemente torturado. Morreu há pouco mais de dois anos, como então registei aqui.

A propósito: não creio que a polícia londrina caia no truque do "padre", se Julien Assenge o vier a tentar. 

* Agradeço a Helena Oneto a lembrança de úteis ligações, que permitem um melhor esclarecimento sobre o "golpe da Sé" e o "golpe de Beja"
** A indicação de que Manuel Serra ia vestido de padre foi-me dada, há muitos anos, por um amigo que conhecia bem o caso. Verifico, contudo, que, segundo a maioria das versões, esse é o traje que terá sido utilizado na fuga do Curry Cabral.

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