O exercício da pesquisa acadêmica
me ensinou que fazer ciência é conversar com a literatura, e que dessa conversa
pode resultar tanto o avanço incremental no entendimento de um aspecto
negligenciado pela teoria quanto o abandono de uma trilha teórica quando a
realidade não dá suporte empírico as conjecturas, ainda que tenham lógica
interna consistente. Sobretudo, a pesquisa é ler, não há alternativas, seja para
entender o conceito histórico, ou para determinar as variáveis do seu
experimento, pesquisar é ler, é interagir com o que foi lido, é como eu já disse:
conversar com a literatura. Hoje, proponho um diálogo, ou pelo menos um início
de conversa, que para muitos pode ser inusitado.
Edward Carr foi pesquisador e
acadêmico no começo do século XX, seu livro Vinte Anos de Crise nos mostra uma
leitura muito refinada da realidade internacional que culminou na Segunda
Guerra Mundial, editado pela primeira vez, em 1939. É uma mostra que é possível
sim fazer boas leituras da história e das relações internacionais no calor dos
acontecimentos. Carr nos mostra um mundo em que, grosso modo, “utópicos”, ou
sejam, os que acreditavam que a institucionalidade da Liga das Nações
substituiria a crueza da balança de poder se tornaram dominantes nos círculos diplomáticos
e analíticos do ocidente, e assim, baseados na premissa que o status quo, era
desejável por todos os atores, construíram suas estratégias, incapazes de
perceber que o ressentimento dos estados que se sentiam prejudicados pelo
status quo poderia colocar todo o sistema em cheque, e jogar o mundo num
conflito mundial desastroso. O autor sugere que a correção dessa percepção utópica
seria uma visão mais “realista” que permitisse acomodar ou mesmo frear as
ambições de estados desafiadores do “status quo”, uma visão que compreendia a existência
de diferentes patamares de poder e se organizava a partir disso.
Francis Fukuyama escreveu seu
célebre e polêmico artigo “The End of History?”, em 1989. Cabe salientar, como
bem nos lembra Paulo Roberto de Almeida, que muitos dos mais virulentos
detratores do trabalho de Fukuyama ignoram a interrogação que habita o título
do artigo. A tese de Fukuyama circula em torno do fato de que a resiliência das
democracias com economias de mercado, tornaria esse tipo de forma de
organização social, a única alternativa viável para os Estados, o triunfo da
ordem liberal. É preciso lembrar que nesse período, o socialismo real, ainda se
constituía como realidade competindo com a democracia de mercado. A derrocada do
império soviético e a Terceira Onda de Democratização pareciam dar confirmação
a essa tese, esse espírito alimenta muito das construções políticas do final do
século XX, havia uma percepção generalizada que a única fonte de conflito a se
resolver seriam as questões étnicas e que ações multilaterais seriam o caminho
de facilitação da paz, a partir de arranjos institucionais como a ONU.
Os dois autores com erudição e
muita pesquisa leram as realidades de seu tempo e encontraram respostas com espíritos
muito diferentes, que ilustram as nossas escolhas de politica externa, nesse
contexto tão único quanto do rescaldo de uma pandemia, num momento de
polarização extrema e de desafio a ordem e prevalência ocidental, que há muito
não assistíamos.
Como observador e analista das
relações internacionais me vejo sonhando com o fim da história, ou seja, um
mundo pacífico, próspero e de liberdades e garantias fundamentais
universalizadas e percebendo um mundo cada vez mais perto de vinte anos de
crise, e tudo que acompanha o duopólio do poder, manipulação de eleições,
guerras comerciais, guerras via Proxy, incertezas e dificuldades econômicas. Essas
são as minhas angústias e esperanças quando lanço meu olhar profissional sobre
o estado das relações internacionais contemporâneas.
O único remédio que me atrevo a
prescrever para essa ansiedade analítica dos nossos tempos é dialogar com
literatura, olhar com diligência para os dados empíricos e não se cegar para
realidade, seja como ela for. Contudo, sigo sem saber se vivemos o fim da história
ou vinte anos de crise.
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