Pular para o conteúdo principal

Brasil e Argentina: Uma entrevista minha sobre carne de porco e disputas comerciais

Retorno a atividade publicando uma entrevista concedida a repórter Sara Sacchi e Souza. (Perguntas em negrito e itálico.)

Entrevista via e-mail para a RádioWeb UNESP

O senhor acredita que essa nova discussão será mais um obstáculo à já complicada consolidação do Mercosul?

Essa disputa é o mais novo capitulo numa difícil história de liberalização comercial do MERCOSUL. Dessa maneira é mais um sintoma do que uma doença, isto é, a medida demandada é um exemplo público das forças responsáveis pelas dificuldades de avanço do bloco e demonstram bem quão organizados são os grupos de pressão que demandam por medidas mais protecionistas e de reserva de mercado. Esses grupos têm sido muito eficientes no cumprimento dessa agenda. Em março desse ano a Argentina aumentou o número de produtos que exige licenciamento prévio e não-automático para importações o que encarece o processo e o torna pendente de aprovação discricionária de burocratas.

Caso a cota realmente seja criada, como o senhor acredita que ela afetará a relação Brasil-Argentina? Se sim, como?

As relações com a Argentina são importantes para a política sul-americana do Brasil isso ficou bem claro com o gesto da presidente Dilma de fazer sua primeira visita internacional a Argentina. Claro, há o simbolismo poderoso de duas mulheres líderes numa região conhecida pelo machismo, mas o objetivo principal foi demonstrar a importância desse vizinho e parceiro. Contudo, mais uma disputa comercial trará conseqüências no relacionamento bilateral que já vem bem desgastado por conta de uma série de disputas assim o cenário comercial entre os dois países deve permanecer tenso por um bom período.

As repercussões que antevejo ficarão restritas a esfera comercial uma vez que no campo político o Brasil mantém com a Argentina relações amplas e profundas e os dois países têm agendas comuns na América do Sul (como o fortalecimento da UNASUL) e em fóruns multilaterais como o G-20 financeiro e OMC, além do fato da Argentina receber investimentos diretos de várias grandes empresas brasileiras incluindo estatais como a Petrobras e o Banco do Brasil o que colabora para que as relações se mantenham próximas, mesmo com as crescentes disputas comerciais. A imagem que se usa comumente e é perfeita para esse caso é a de irmãos que tem suas diferenças, mas nem por isso rompem ou se tornam inimigos.

O senhor acha que a criação dessa cota seria uma espécie de retaliação aos brasileiros? Por quais motivos?

Não creio que sejam alimentadas por algum preconceito contra brasileiros. As medidas têm como pano de fundo a situação da produção suína argentina que passou por um período de decadência e agora tenta se reerguer nesse sentido os produtores locais pressionam o governo por proteção, por reserva de mercado. Há também o interesse dos frigoríficos locais para que o abate dos animais ocorra lá e nisso temos também o envolvimento de sindicatos de trabalhadores desse setor. A medida é motivada pela conjuntura econômica local.

Já ocorrem taxações desse tipo?

Aqui cabe diferenciar aumento de tarifa da medida que a Federación Agraria Argentina propõe é uma medida não-tarifária, ou seja, restrições na quantidade que pode ser importada. Esse tipo de medida de restrição quantitativa não é novidade na história das relações comerciais entre os dois países.

Medidas não-tarifárias já fora, aplicadas no comércio de produtos industriais da linha branca como geladeiras, máquinas de lavar e fogões a gás. Há a questão das licenças de importação que tem gerado atritos consideráveis entre os dois países. E é preciso salientar que há medidas de restrição de parte a parte.

O senhor concorda com o Pedro de Camargo Neto que afirma que o volume de exportações ao país vizinho não é significativo? Ele diz ainda que os custos de produção dos produtores argentinos é menor dos que o do brasileiro, já que eles tem acesso ao milho mais barato do mundo. O senhor acha então que essa tentativa de criar uma cota é puro protecionismo e 'choradeira', como afirma o pecuarista, ou acredita que existem fundamentos no pedido dos ruralistas argentinos?

Não creio que o volume seja insignificante já que só em março totalizaram algo em torno de 44.000 t de carne e a Argentina é nosso terceiro maior mercado comprador desse produto. Ainda que tenha havido uma queda com relação ao ano passado.

A questão é que o governo argentino tem agido para incentivar o consumo de carnes outras que a de vaca. E os produtores locais querem tomar partido dessa política e aumentarem sua produção. O estoque de suínos naquele país reduziu 40% de 1998 e 2002. O que mostra que há fragilidades no setor, que vão muito além de preço de insumos.

Está claro que o caráter das medidas é protecionista uma vez que procura criar barreiras a competição, contudo há provisões na legislação internacional que permitem a criação dessas medidas sempre que se prove que o pico de importações causa ou ameaça causar dano a produção local. E a justificativa dos produtores argentinos é justamente que a importação impede que eles consigam desenvolver capacidade competitiva na produção local de carne de porco. Assim, a justificativa é que a medida defenderia o produtor local e o emprego. E numa situação econômica e social que se encontra a Argentina esse discurso encontrará ressonância.

Comentários

Cássio disse…
Pois é! A Argentina na sua maratona de sair de uma crise que parece não ter fim... Eu acho que é relevante essas cotas, ainda que seja uma atitude protecionista. Até porque como foi mencionado pelo entrevistado a visita de Dilma a Argentina não se deu apenas como aparição de duas mulheres comandando em terras machistas e sim no reconhecimento da Argentina, ainda que não recuperada de uma crise, para a importância do mercado brasileiro...
Mário Machado disse…
Só pra constar claro não tenha ficado claro eu fui o entrevistado.

Abs,
Fernanda disse…
A Argentina é parceiro importantíssimo, e pode vir a ser ainda mais vital no futuro(ela e os demais países da América Latina). Espero que resolva logo suas questões e o protecionismo não arranhe as relações entre os dois países; só é bonitinho ser adversário no futebol... Sucesso no blog!

Postagens mais visitadas deste blog

Colômbia – Venezuela: Uma crise previsível

A mais nova crise política da América do Sul está em curso Hugo Chávez o presidente da República Bolivariana da Venezuela determinou o rompimento das relações diplomáticas entre sua nação e a vizinha Colômbia. O fez em discurso transmitido ao vivo pela rede Tele Sur. Ao lado do treinador e ex-jogador argentino Diego Maradona, que ficou ali parado servindo de decoração enquanto Chávez dava a grave noticia uma cena com toques de realismo fantástico, sem dúvidas. Essa decisão estar a ser ensaiada há tempos, por sinal em maio de 2008 seguindo o ataque colombiano ao acampamento das FARC no Equador. Por sinal a atual crise está intimamente ligada aquela uma vez que é um desdobramento natural das acusações de ligação entre a Venezuela e os narco-gueriilheiros das FARC. Nessa quarta-feira o presidente da Colômbia (e de certa maneira o arquiinimigo do chavismo na América do Sul) Álvaro Uribe, por meio de seus representantes na reunião da OEA afirmou que as guerrilhas FARC e ELN estão ativas...

Bye, bye! O Brexit visto por Francisco Seixas da Costa

Francisco Seixas da Costa é diplomata português, de carreira, hoje aposentado ou reformado como dizem em Portugal, com grande experiência sobre os intricados meandros da diplomacia européia, seu estilo de escrita (e não me canso de escrever sobre isso aqui) torna suas análises ainda mais saborosas. Abaixo o autor tece algumas impressões sobre a saída do Reino Unido da União Européia. Concordo com as razões que o autor identifica como raiz da saída britânica longe de embarcar na leitura dominante sua serenidade é alentadora nesses dias de alarmismos e exagero. O original pode ser lido aqui , transcrito com autorização do autor tal qual o original. Bye, bye! Por Francisco Seixas da Costa O Brexit passou. Não vale a pena chorar sobre leite derramado, mas é importante perceber o que ocorreu, porque as razões que motivaram a escolha democrática britânica, sendo próprias e específicas, ligam-se a um "malaise" que se estende muito para além da ilha. E se esse mal-estar ...

Fim da História ou vinte anos de crise? Angústias analíticas em um mundo pandêmico

O exercício da pesquisa acadêmica me ensinou que fazer ciência é conversar com a literatura, e que dessa conversa pode resultar tanto o avanço incremental no entendimento de um aspecto negligenciado pela teoria quanto o abandono de uma trilha teórica quando a realidade não dá suporte empírico as conjecturas, ainda que tenham lógica interna consistente. Sobretudo, a pesquisa é ler, não há alternativas, seja para entender o conceito histórico, ou para determinar as variáveis do seu experimento, pesquisar é ler, é interagir com o que foi lido, é como eu já disse: conversar com a literatura. Hoje, proponho um diálogo, ou pelo menos um início de conversa, que para muitos pode ser inusitado. Edward Carr foi pesquisador e acadêmico no começo do século XX, seu livro Vinte Anos de Crise nos mostra uma leitura muito refinada da realidade internacional que culminou na Segunda Guerra Mundial, editado pela primeira vez, em 1939. É uma mostra que é possível sim fazer boas leituras da história e da...