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Algumas palavras. Algumas perguntas

Normalmente minhas inquietações são cientificas, ou seja, são inquietações sobre os métodos de análise, questões teóricas e sobre o próprio objeto de estudo de nossa ciência que são as interações dos vários atores no sistema internacional e a própria conformação desse sistema.

Contudo, alguns pensamentos sobre as relações internacionais têm invadido meus pensamentos nos últimos dias, talvez pela saturação de imagens tenebrosas de toda sorte de tragédias, talvez por alguma crise existencial não identificada. Esses pensamentos são sobre a maneira com que devemos nos relacionar com esse objeto de estudo.

Eu costumava ser capaz de abordar a esses temas de maneira asséptica, sem me envolver e nem levar em conta os dramas humanos que se encerram por trás de movimentos dos atores internacionais. Por exemplo, é fácil classificar algum movimento militar, como a invasão russa da Geórgia, como uma mera flexão de músculos, sem levar em conta que esse evento sem maiores repercussões no sistema internacional provocou mortes.

O leitor assíduo já leu algo relativo a isso nesse espaço. Critiquei algumas vezes a rapidez com alguns colegas de profissão (que graças a Deus não estão em posições de poder) sugerem o uso da força. Claro, que no sentido prático eles são quase irrelevantes, contudo a mentalidade me preocupa. O que preocupa nessa linha de pensamento é o pouco valor que dão a vida humana. Eu entendo nossos soldados são treinados para guerrear (além das operações militares outras que não a guerra, que um amigo tanto me lembra que existem), mas não é por que eles treinam para isso que vamos enviá-los a torto e a direito.

O profissional de relações internacionais tem, a meu ver, a obrigação de pensar estrategicamente e, portanto pensar nos desenlaces do que propõe. E mais qualquer bom profissional, não pode falar de algo sem a devida pesquisa e segurança. Mas, no final é uma questão de responsabilidade pessoal e cada um que cuide de sua credibilidade.

Mas, não foi ditar o que cada um deve ou não fazer que me motivou a escrever essas linhas (ou seria melhor dizer esses bytes) mesmo por que nem me compete fazer isso e nem aceitaria tal empreitada.

Tenho sido capaz de manter minha objetividade na análise, mas cada vez menos consigo me separar do que analiso. Não tenho conseguido desligar a empatia para falar de um conflito, por exemplo. Isso não quer dizer que escrevo textos chorosos (tirando uma ou outra reflexão – desabafo – é claro) falo da minha vida pessoal mesmo. Por exemplo, me perturba muito analisar verdadeiras desgraças como a situação do Haiti. Ou ler relatos de guerra, como o que li de já há alguns meses de um soldado do Exército Americano, brasileiro de nascença americano por opção (que respeito por sinal) que falava sobre colegas dele que em missão humanitária no Paquistão se depararam com uma mãe que ninava uma filha que morreu de frio. Como não pensar nas crianças de nossa família ao ler um relato como esse?

Eu que sempre que posso respondo a perguntas e ajudo aspirantes as relações internacionais ou colegas de profissão peço a vocês ajuda. Como vocês lidam com o lado pessoal de se desdobrar sobre tragédias e conflitos? Sei lá alguma receita para deixar de ser “fresco” e não me abalar tanto com essas coisas? Como “exorcizar” essa carga emotiva para continuar o dia incólume? Será possível ser frio e distante o tempo todo? E, como quem toma decisões graves e onerosas consegue lidar com isso?

Comentários

Anônimo disse…
Olá Mário!
É difícil, nas situações que você mencionou, manter-se sempre distante durante a observação de dados e informações e no momento de análise.

Opinar não nos permite ficar em cima do muro, temos que decidir; e diante de situações trágicas e conflituosas as opiniões (escritas ou não) acabam expondo valores, e às vezes emoções, até para nós mesmos.

Não vejo esse comportamento como um sinônimo de fraqueza ou de frescura, muito pelo contrário, isso é sermos verdadeiros conosco.

É nessas horas que nós colocamos nossos valores à prova, principalmente quando é preciso optar em momentos difíceis. Por isso que acredito que a consistência dos valores dos stakeholders influenciam as suas decisões. Há os que preferem renunciar e manter sua integridade, há os que cedem por pressão, há os que não se importam nem um pouco com o ser humano.

É curioso como as RI, tratando do conjunto de relações entre os seres humanos, nos força a sermos 100% razão e pensarmos puramente questões coletivas. E ao mesmo tempo, nos permite nos colocarmos no lugar do outro, para entendermos qual o papel dele dentro do sistema (identificar expectativas, motivações...) e quais os efeitos do sistema sobre ele.

Espero ter compreendido o que você quis dizer e ter te ajudado de alguma forma.

Até mais,

Camila
Mário Machado disse…
Camila,

Você captou bem o que eu quis dizer ou melhor o que eu quis indagar. É bem mais fácil analisar as coisas por livros e assim vai. O problema é que as "imagens" vão ficando acumuladas. Tive a curiosidade de saber como meus leitores lidam com isso.

Obrigado pelas palavras.

Abs,

Mário

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