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Pausa para celebrar um gênio (ainda que com falhas bem humanas)

Edson Arantes do Nascimento nasceu na cidade mineira de Três Corações, mas foi nas franjas do mar na cidade de Santos que foi alçado a realeza e ao status de mito. Seu mito esportivo é por todos os brasileiros conhecidos, até por aqueles que como eu nasceram muito depois de que esse deixasse os gramados. Edson é mais conhecido por seu apelido, que por sinal é mais que um apelido e se conforma em um verdadeiro alter ego, já que o próprio se refere ao Pelé, na terceira pessoa.

Pelé completou hoje 70 anos de idade e a força de seu mito ainda se faz sentir como bem mostram os jornais que dão conta que o eterno rei do futebol fatura BRL 30.000.000,00 por ano uma quantia significativa que é maior que a que o atual melhor jogador do mundo o argentino Lionel Messi fatura com publicidade por ano.

Se o Pelé é uma figura esportiva acima de qualquer debate em sua genialidade. O ser humano Edson se mostra bastante falho, contudo somos todos sujeitos a falhas e não tenho a pretensão aqui de analisar e “desconstruir” (detesto o termo típico de uma linha de pensamento pós-moderno que não sou muito adepto para dizer o mínimo) esse mito.

Meu desejo nesse interregno de nossos assuntos internacionais apenas celebrar aquele que é o brasileiro mais conhecido do mundo, ainda que suspeite que o presidente queira superar essa marca. E para marcar os 70 anos desse herói do futebol transcrevo uma crônica preciosa do controverso, mas inegavelmente talentoso (tal qual o Pelé) Nelson Rodrigues. A crônica se chama “A realeza de Pelé” e foi publicada pela primeira vez, em 25 de fevereiro de 1958, na Manchete Esportiva. E pode ser encontrada no livro A Sombra das Chuteiras Imortais. Editado pela Companhia das Letras. A versão aqui publicada foi encontrada no Blog Futebol Arte. Após a crônica há um interessante vídeo com jogadas do Rei. O vídeo parece ser um trailer do filme “Pelé Eterno”, mas não sei precisar.

A Realeza de Pelé

Depois do jogo América x Santos, seria um crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “O Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: – dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: – verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racialmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: – ponham-no em qualquer rancho e a sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.

O que nós chamamos de realeza é, acima de tudo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola, e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: – “Quem é o maior meia do mundo?” Ele respondeu, com a ênfase das certezas eternas: “Eu”. Insistiram: “Qual é o maior ponta do mundo?” E Pelé: “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, já no referido América x Santos. Enfiou, e que sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: – “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”.

De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio de campo. Outro qualquer teria despachado, Pelé não. Olha para a frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: – sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém pra driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: – a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.

Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, de certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível na formação de qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente de que precisamos. Sim, amigos: – aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

Por que perdemos, na Suíça, para a Hungria? Examinem a fotografia de um e outro time entrando em campo. Enquanto os húngaros erguem o rosto, olham duro, empinam o peito, nós baixamos a cabeça e quase babamos de humildade. Esse flagrante, por si só, antecipa e elucida a derrota. Com Pelé no time, e outros como ele, ninguém irá para a Suécia com a alma dos vira-latas. Os outros é que tremerão diante de nós.

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