Pular para o conteúdo principal

Notas parisienses por Francisco Seixas da Costa

cartoon3_3157431cFrancisco Seixas da Costa nos brinda com uma análise sóbria sobre o ataque terrorista, de ontem, em Paris. Vários elementos que ele aborda estão presentes em minhas próprias análises aqui publicadas. Abaixo o texto, copiado com autorização do autor, cujo original pode ser lido aqui.

Notas parisienses

Por Francisco Seixas da Costa

1. Nunca fui um leitor regular do "Charlie Hebdo", mas reconheço a genialidade do seu traço e, embora nem sempre concordando com a crueldade crítica que utilizava, quero afirmar que felizes são os países onde pode publicar-se um jornal deste tipo. Em Portugal, um "Charlie Hebdo" não seria aniquilado pelas balas do terrorismo, mas por uma imensidão de processos judiciais e perseguições de outra ordem. Ter um "Charlie Hebdo", como ter um "Canard Enchainé" ou um "Private Eye" no Reino Unido, glorifica um país em matéria de liberdade de imprensa. Ver desaparecer Wolinski (cuja "especialidade" nem sequer eram, a meu ver, os cartoons políticos) é assistir à saída de cena de alguém que faz parte da memória da minha geração. Hoje é um dia triste.

2. Como o meu colega e sucessor em Paris, José Filipe Moraes Cabral, há horas sublinhou nas televisões, o corajoso papel assumido pela França (e praticamente por mais ninguém) na luta anti-terrorista no Sahel, bem como a sua aberta cooperação no combate ao "Estado Islâmico", expõe mais o país a retaliações desta natureza. É o preço da responsabilidade demonstrada por um grande Estado. Qualquer que seja a avaliação que se faça da política interna de Hollande, há que elogiar o seu forte empenhamento em matéria de segurança, demonstrado à escala global, não obstante as fortes condicionantes orçamentais que o país atualmente sofre. 

3. A França é um país que tem anterior experiência de atentados terroristas com origem no islamismo radical, embora nenhum deles com esta expressão quantitativa em matéria de vítimas. Porém, no passado, a esmagadora maioria dos atentados que ocorreram em França foi cometida por cidadãos estrangeiros. Ao que tudo indica, o atentado de ontem terá sido levado a cabo por franceses, nascidos no seu solo, filhos de imigrantes. Tal como o Reino Unido experimentou em 2005, a sociedade francesa gerou já, dentro de si, os germes da violência radical islâmica, aliás percetível no elevado número de "jihadistas" gauleses (soa mal, não soa?) que estão já nas fileiras do "Estado Islâmico". Combater decididamente essa deriva é um imperativo, desconstruir as razões desta apetência para o radicalismo limite é uma necessidade.

4. O Islão é uma religião que sofre hoje uma forte diabolização (é irónico chamar o diabo a esta questão), um pouco por todo o lado, embora as pessoas tendam a esquecer que os cidadãos muçulmanos são, nos dias que correm, as principais vítimas das suas expressões mais sectárias. Da Indonésia ao Paquistão, do Quénia à Síria ou ao Iraque, muitos milhares de muçulmanos perderam ou perdem, dia após dia, a vida em atentados bem mais mortíferos que o que ontem abalou a França. Por essa razão, continua a ser estranho que as comunidades islâmicas moderadas não ergam mais a sua voz contra este tipo de facínoras que agem invocando os princípios corânicos. O que vemos é uma distanciação mole, um "não, mas", de quem parece intimidado e temeroso, embora longe de ser deliberado cúmplice. As figuras responsáveis entre esses muçulmanos, que são uma esmagadora maioria, talvez não se estejam a dar conta que, com a sua tibieza, se arriscam, um destes dias, a ficar na linha da frente de uma guerra religiosa que os não poupará. Curiosamente, na Europa, as comunidades muçulmanas reagem face ao radicais no seu seio como as monarquias do Golfo fizeram quanto ao Al Qeda. Ora a pusilanimidade só leva à tragédia, como a história prova.  

5. Contrariamente aos apelos exteriores que se ouviram, a sensação que tenho é de que a moldura legislativa francesa, para o combate à violência sectária e ao radicalismo que chega ao terrorismo, é já suficientemente sólida. Além disso, a França dispõe de uma rede de "intelligence" muito eficaz, que sempre poderá ser melhorada, mas que, tal como em qualquer outro país, não pode garantir nunca, em absoluto, uma prevenção total contra atos terroristas. O terrorismo dispõe da iniciativa e da capacidade de gerar surpresa. Pode-se limitar estatisticamente o desenvolvimento das suas redes, mas é impossível prevenir, em absoluto, que um atentado ocorra.

6. O ato terrorista de ontem vai deixar marcas na política francesa. Mais do que para Hollande, é para o primeiro-ministro Manuel Valls que os olhares da França se voltarão nos próximos dias. Valls, que foi presidente de um município onde a convivência multicultural era uma das grandes questões (tendo, aliás, sido sucedido no cargo por um luso-descendente), mostrou, como ministro do Interior, um perfil securitário contrastante com o discurso mais contemporizador que o PSF costumava assumir nestes temas. A França vai-lhe exigir, não palavras, mas resultados concretos no esclarecimento rápido deste caso. De toda a forma, será sempre a direita política, da mais democrática à mais radical, quem irá ganhar com este episódio. Há uma grande inquietação em toda a França, uma preocupação evidente pela crescente afirmação comunitarista do islamismo, que induz tensões surdas na sociedade e, com alguma naturalidade, cria reflexos anti-imigração. Daqui a um discurso racista e xenófobo é um curto passo que muitos franceses já deram. Se, em termos de eleições legislativas ou presidenciais futuras, isso vier a ter uma expressão flagrante e maioritária, ficará mais evidente que o problema deixou já de ser só francês.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Colômbia – Venezuela: Uma crise previsível

A mais nova crise política da América do Sul está em curso Hugo Chávez o presidente da República Bolivariana da Venezuela determinou o rompimento das relações diplomáticas entre sua nação e a vizinha Colômbia. O fez em discurso transmitido ao vivo pela rede Tele Sur. Ao lado do treinador e ex-jogador argentino Diego Maradona, que ficou ali parado servindo de decoração enquanto Chávez dava a grave noticia uma cena com toques de realismo fantástico, sem dúvidas. Essa decisão estar a ser ensaiada há tempos, por sinal em maio de 2008 seguindo o ataque colombiano ao acampamento das FARC no Equador. Por sinal a atual crise está intimamente ligada aquela uma vez que é um desdobramento natural das acusações de ligação entre a Venezuela e os narco-gueriilheiros das FARC. Nessa quarta-feira o presidente da Colômbia (e de certa maneira o arquiinimigo do chavismo na América do Sul) Álvaro Uribe, por meio de seus representantes na reunião da OEA afirmou que as guerrilhas FARC e ELN estão ativas...

Bye, bye! O Brexit visto por Francisco Seixas da Costa

Francisco Seixas da Costa é diplomata português, de carreira, hoje aposentado ou reformado como dizem em Portugal, com grande experiência sobre os intricados meandros da diplomacia européia, seu estilo de escrita (e não me canso de escrever sobre isso aqui) torna suas análises ainda mais saborosas. Abaixo o autor tece algumas impressões sobre a saída do Reino Unido da União Européia. Concordo com as razões que o autor identifica como raiz da saída britânica longe de embarcar na leitura dominante sua serenidade é alentadora nesses dias de alarmismos e exagero. O original pode ser lido aqui , transcrito com autorização do autor tal qual o original. Bye, bye! Por Francisco Seixas da Costa O Brexit passou. Não vale a pena chorar sobre leite derramado, mas é importante perceber o que ocorreu, porque as razões que motivaram a escolha democrática britânica, sendo próprias e específicas, ligam-se a um "malaise" que se estende muito para além da ilha. E se esse mal-estar ...

Fim da História ou vinte anos de crise? Angústias analíticas em um mundo pandêmico

O exercício da pesquisa acadêmica me ensinou que fazer ciência é conversar com a literatura, e que dessa conversa pode resultar tanto o avanço incremental no entendimento de um aspecto negligenciado pela teoria quanto o abandono de uma trilha teórica quando a realidade não dá suporte empírico as conjecturas, ainda que tenham lógica interna consistente. Sobretudo, a pesquisa é ler, não há alternativas, seja para entender o conceito histórico, ou para determinar as variáveis do seu experimento, pesquisar é ler, é interagir com o que foi lido, é como eu já disse: conversar com a literatura. Hoje, proponho um diálogo, ou pelo menos um início de conversa, que para muitos pode ser inusitado. Edward Carr foi pesquisador e acadêmico no começo do século XX, seu livro Vinte Anos de Crise nos mostra uma leitura muito refinada da realidade internacional que culminou na Segunda Guerra Mundial, editado pela primeira vez, em 1939. É uma mostra que é possível sim fazer boas leituras da história e da...