O dia D é um desses grandes acontecimentos históricos que mexem com o imaginário coletivo e por isso mesmo ocupam lugar de destaque no que se chama de cultura pop ao servirem de cenário e trama para inúmeras obras áudiovisuais e livros. O heroísmo das batalhas é fruto de muita tragédia humana e essa dimensão nefasta nunca pode ser perdida em nós, ou nos tornamos um desses muitos “especialistas” que não conseguem disfarçar sua macabra excitação com os tambores de guerra. No texto abaixo de modo singelo e com o estilo de sempre o embaixador Seixas da Costa trata do imaginário que a batalha desperta e da crueza de sua realidade. E, também, que a paz tem seu preço que é pago com o pragmatismo de quem cansou da guerra.
PS: A foto da Igreja de Sainte-Mère-Église que ilustra esse post retrata o memorial ao paraquedista John Steele.
Por Francisco Seixas da Costa
Foi em Deauville, na Normandia, depois de um jantar, em 2010. Falava com o "maire" da cidade, a quem havia manifestado a minha admiração pelo facto de, em muitos locais da região, ter encontrado, lado a lado, bandeiras francesas e alemãs, em cemitérios que celebravam as vítimas da guerra em que ambos os países se haviam defrontado de forma trágica, entre 1939 e 1945.
Meses antes, durante vários dias de férias, havia percorrido toda (mas mesmo "toda") a "costa do desembarque", passando pelas célebres praias que os americanos tinham crismado com nomes bem sonantes. Visitara as casamatas alemãs, museus militares e restos das lanchas aliadas utilizadas no "dia D", 6 de junho de 1944. Desde criança que eu era um "viciado" no tema. O meu pai falava-me com entusiasmo desse dia histórico em que os aliados desembarcaram na Normandia, dando um impulso decisivo à derrocada da agressão nazi na Europa. Tornei-me desde então um leitor compulsivo de livros sobre a Segunda Guerra mundial, um assunto sempre muito presente nas conversas e nas prateleiras de livros lá de casa. Viver em França deu-me oportunidade de percorrer, de mapa na mão e de forma organizada, todos esses locais que tanto haviam mobilizado a minha imaginação.
Ao "maire" de Deauville perguntei se aos mais velhos, àqueles a quem a guerra tinha afetado diretamente as suas vidas, não chocava essa convivência com a bandeira do antigo inimigo. Explicou-me que, de facto, para algumas pessoas dessa geração que vivera a guerra "a quente", não terá sido fácil aceitar a normalidade da relação pós-conflito, com um país que lhes infligira tanto sofrimento. Mas esse era o "preço" da nova Europa, da nova amizade franco-alemã à volta da qual se construíra a paz e a unidade económica e política das Comunidades.
O "maire" acrescentou, contudo, algo por que eu não esperava. Disse-me que muitos habitantes da Normandia, no período imediatamente após a guerra, mantinham sentimentos ambivalentes face aos ingleses e aos americanos - que eu pensava, com naturalidade, serem vistos como os libertadores que, de facto, foram. "Convém não esquecer que, para a população civil que habitava a Normandia, a força aérea inglesa e americana era vista responsável por meses de bombardeamentos de posições militares alemãs distribuídas por toda a região, cuja precisão estava muito longe de ser total, frequentemente destruindo casas de civis, provocando vítimas francesas, em muitas noites de terror". Nunca tinha pensado nisso: o "friendly fire" também mata.
Passam hoje 70 anos sobre essa data memorável. As praias da Normandia foram cenário de comemorações sobre a paz reconquistada na sequência do "dia D". Mas a guerra não desapareceu por completo da Europa, primeiro nos Balcãs, agora na Ucrânia. A paz é o bem mais inseguro da História.
Comentários