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Rússia, Ucrânia, UE e EUA: Uma questão de profundidade, near abroad e algumas lições históricas

Putin Putin não é um homem simpático aos olhos do ocidente, suas manobras para se manter no poder indeterminadamente frustraram a esperança global de ver o ‘fim da história’, ou posto de outra maneira frustraram as esperanças de um aprofundamento da Terceira Onda de Democratização propagada pela ruína do império soviético. A Rússia não é exatamente uma ditadura escancarada como a China, nem é uma democracia em pleno funcionamento, como o poder da presidência de nomear governadores nos mostra. Mas, simpático ou não Putin é um político habilidoso e um líder capaz de galvanizar apoio em seu país.

Como político habilidoso que é o ex-oficial da KGB e FSB sempre soube cuidar da sua imagem e seu branding é o do homem forte, sério e capaz de manter a ordem, a lei e de restaurar a dignidade e grandeza russa. Em 1999, quando substitui um enfraquecido Boris Ieltsin sua relativa juventude (possuía apenas 47 anos) e seu vigor físico chamavam a atenção do povo russo habituado com líderes soviéticos idosos e de cintura proeminente. Seus estrategistas políticos e seus marqueteiros fizeram questão de ilustrar isso com divulgação de imagens do líder praticando esportes. Tática que funcionou por pouco tempo no Brasil do governo Collor.

A realidade política, no entanto, não era fácil. Putin assumiu um país debilitado economicamente, aturdido pelo fim da URSS e lidando com separatismo radical dos chechenos. E, foi nesse front que Putin alcançou o ponto máximo de sua popularidade ao liderar uma brutal resposta a tomada do teatro Dubrovka, em 2002, quando com auxílio de um uma arma química não revelada oficialmente, agentes Spetsnaz invadiram o teatro matando todos os seqüestradores, bem como 139 reféns. Os russos em sua maioria aprovaram a ação rápida e com uso da força. O contexto da Guerra ao Terror iniciada em 2001 permitiu que Putin tivesse grande autonomia para lidar com o separatismo checheno, sem grandes repreensões de Washington.

Uma coisa deve ser dita sobre Putin ele sabe operar dentro dos ditames da lei, claro isso é facilitado por que ele controla o parlamento, e por assim proceder é muito difícil vence-lo nas cortes, mesmo para os poderosos oligarcas russos. Outra prova da habilidade política do homem.

Historicamente a Rússia é protegida pelo seu tamanho massivo e pela dificuldade que sua profundidade impõe as linhas de suprimento de qualquer pretenso invasor que é obrigado pela geografia a realizar campanhas longas e no inverno os recursos de logística aérea são dificultados, isso na hipótese de o agressor conseguir manter superioridade aérea, o que é uma hipótese e tanto. Essa profundidade como barreira dissuasória russa é reforçada pelas lembranças dos fracassos de Napoleão e Hitler no front oriental.

Assim, é natural e lógico que os estrategistas russos tentem sempre empurrar essa fronteira o mais a oeste possível, criando buffers com mais ou menos autonomia interna, mas geopoliticamente subordinados a Moscou, foi assim no período soviético em que a influência russa ia até a Alemanha.

Com a queda da URSS o ocidente avançou pelos antigos satélites e isso pareceu aceitável ainda que desconfortável para a Rússia que se via envolta em uma grave crise interna e lutava para não fragmentar ainda mais seu território.

Putin é fortemente influenciado pelos neo-eurasianos que entendem que a segurança russa depende da subordinação das antigas Repúblicas Soviéticas e o movimento da OTAN em incluir na sua aliança os países bálticos (Lituânia, Estônia e Letônia), em 2004, alertou os estretegistas russos. A questão parece clara, os russo aceitam governos pró-ocidente e até em certa medida anti-russos desde que não haja nenhuma institucionalização pró-ocidente.

A Geórgia é prova maior dessa “linha vermelha” pra usar a expressão de Obama quando falava de armas químicas na Síria, ou seja, institucionalizar laços com a OTAN ou UE é ponto sem retorno no qual o problema de segurança se torna tão vital para os russos que a intervenção direta se torna imperativo não obstante os riscos e prejuízos de tal ação.

Ainda que uma invasão a Rússia pareça um delírio persecutório e coisa de gente que vive procurando iluminatis na internet, na verdade a inexistência de percepção de risco pode mudar rápido, basta lembrar que em agosto de 1939 a Rússia e Alemanha pareciam ter deixado pra trás as tensões do Pangermanismo e Pan-Eslavismo que resultaram da Guerra da Crimeia e assinavam um pacto de não-agressão e em 22 de julho de 1940, os alemães atacavam a URSS.

É certo que não se pode traçar uma estratégia de segurança de longo prazo inteiramente calcada em riscos visíveis e previsíveis e no caso russo a estratégia histórica é alargar ao máximo sua buffer zone seja alimentando o Pan-Eslavismo (cujas cores do movimento são as cores da bandeira russa atual) ou exportando a revolução comunista para os países mais a ocidente, até o coração da Europa com a Alemanha Oriental.

Essa estratégia russa, explicitada na Geórgia, de coerção para manutenção das Ex-Repúblicas Soviéticas sob sua influência, em política de defesa e externa é chamada de manutenção do Near Abroad, que como conceito geopolítico é uma junção do velho pan-eslavismo que atribui a Rússia o papel de proteger os falantes de russo e a cultura e civilização eslava, com toques da doutrina de segurança por profundidade e a idéia de restauração da grandeza dos tempos soviéticos.

Essa percepção de ameaça e contenção da influência russa são grandes motivadores das ações russas na Ucrânia ao menor sinal de aliança com o ocidente, fica claro que os russos pressionavam o presidente deposto a não assinar acordos com a UE, o que eles não contavam era que a cisão na política ucraniana seria tão profunda a ponto de alimentar a massa crítica que depôs o presidente e frustrou a operação de convencimento e softpower que a diplomacia russa havia preparado com ajuda financeira para a Ucrânia, com a sedução inviabilizada, os russos partiram para a redução de danos.

Entender as motivações profundas da Rússia e como as idiossincrasias e imagem projetada de seus líderes funcionam ajudam a entender por que a Rússia arrisca tanto ao intervir abruptamente na Ucrânia.

Fica claro Putin quer seu near abroad preservado da influência da União Européia, das armas da OTAN e, sobretudo do efeito demonstração de ter tão perto e com condições tão similares uma democracia mais verdadeira funcionando o que poderia estimular novos e velhos separtismos além de inspirar e até mesmo financiar grupos opositores em casa, que tornariam seu projeto de poder mais difícil de realizar.

É preciso determinar, também, quão forte é o desejo de liberdade e democracia das populações do Near Abroad, por que mesmo que os russos consigam elevar a qualidade de vida material dessas populações e expandir emprego e renda, se for profundo o desejo por liberdade será muito difícil pra Moscou manter regimes estáveis sem degenerar para ditaduras escancaradas o que pode dar motivos indiscutíveis para o ocidente empurrar ainda mais sua influência a leste. Por hora, os custos econômicos têm falado mais alto que os desejos geopolíticos, mas como a história nos mostra tudo muda muito rápido. Na Crimeia o sentimento de pertencer a Rússia é grande entre os habitantes, mas isso não vale para toda a Ucrânia e sem o arremedo de solução democrática da consulta popular tudo fica mais explícito, mais agressivo e maior é a pressão que a opinião pública terá sobre os governantes ocidentais. Por isso a busca pelo controle da narrativa.

Até que ponto estão os russos dispostos a irem para manter a sua profundidade e como vão se comportar EUA, UE e outros atores locais? É a pergunta que devemos nos fazer agora e para uma indicação de como é intricada a questão basta ver a pressão que a Polônia e os países bálticos colocam na OTAN para que contenha a expansão da influência russa.

(E de repente o leitor mais versado em Relações Internacionais se dá conta que a velha aula de TRI sobre níveis de análise é verdadeiramente útil, ainda mais quando além de instituições nacionais, arranjos regionais e distribuição de força, damos atenção a ideologia e cosmovisão dos atores decisores, por que isso afeta como eles percebem os fatos políticos e como esses fatores juntos ajudam a vislumbrar a questão de modo completo escapando do simplismo dos ativistas. Ainda que não será um texto feito para blog que vá esgotar o assunto, é claro.)

Muito ainda resta incerto na Ucrânia e o conflito pode ainda se escalar, mas as motivações russas são profundas e a insegurança pode torná-los imprevisíveis, e tudo que o mundo precisa e quer de potências nucleares é que elas sejam previsíveis. Mas, explique para os jovens ucranianos que eles devem aceitar a influência de Moscou para a manutenção do status quo. Diante disso a única coisa que resta claro é que a crise para ser superada vai exigir muito Statesmanship e nesse quesito a Síria nos mostra que Putin parece a frente de Obama.

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Votem COISAS INTERNACIONAIS na segunda fase do TOPBLOGS 2013/2014

Comentários

Anônimo disse…
Mario!


Encontrei o seu blog meio que por acaso, nas minhas tradicionais pesquisas sobre campo de atuação e oportunidades de emprego para os formandos em RI. Estou no 5º período da graduação pela UEPB e confesso que a medida em que me aproximo do seu término, minha angústia só aumenta, assim como a dos meus colegas (que eram 40 e agora são pouco mais de 10). Grande parte dos que entraram na mesma turma que eu desistiram por questões de oportunidades limitadas e baixas espectativas de lograr êxito na profissão. Eu sou uma das que não me vejo fazendo outra coisa e que por isso ainda insisto na idéia. Assim, dada a sua experiência e formação veterana na área, o que você acha que mudou no cenário atual da nossa profissão e se ela é realmente uma carreira promissora ou apenas uma "miragem no deserto"?

Agradeço!


Mariana
Mário Machado disse…
Mariana,

Envie um e-mail para que eu possa responder pessoalmente. Contudo, na tag dúvida de leitores há uma amostra do que penso sobre a empregabilidade.

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