Tenho conduzido uma reflexão pública nas páginas desse blog acerca da crise ucraniana e a provável incorporação da Crimeia a Mãe Rússia, ainda estou elucubrando minha visão sobre o tema e como a boa metodologia sugere tenho buscado saber o que pensam outros colegas de profissão sobre o assunto, não para aderir a alguma visão, mas na busca de elementos para a construção da minha visão sobre o tema. Nutro a esperança que você distinto leitor venha até esse Coisas Internacionais no mesmo intuito. Nesse sentido transcrevo dois textos de dois embaixadores, o primeiro é uma curta nota de Renato Marques, ex-embaixador brasileiro na Ucrânia, o segundo texto é de Francisco Seixas da Costa, ex-embaixador de Portugal no Brasil, França e alhures que ao longo de sua carreira trabalhou na construção da Europa unificada que vemos hoje.
A primeira nota não se pretende analítica, mas projeta cenários, o que é um passatempo muito apreciado por esses seres de diversões excêntricas que somos nós internacionalistas. Já o segundo texto trata a questão com a luz da experiência nas entranhas da burocracia européia e aponta o que pode ser um erro de cálculo das lideranças do velho continente.
Uma curta nota sobre a Crimeia
Por Renato Marques
Quanto à Crimeia, me parece que a "solução" é mais ou menos óbvia, dependendo do bom senso das partes e das questões a serem submetidas pelo referendo.
Em princípio, o referendo aprova o aprofundamento da autonomia da Crimeia, sem seu desmembramento do território ucraniano.
O Ocidente - que reluta em impor sanções à Rússia, não só por sua dependência energética, mas também porque tem importantes interesses empresariais no pais - se dá por satisfeito.
A República da Crimeia passa a desfrutar de maiores poderes de autogestão (e permite o aumento do número de navios e tropas russas na península, o que satisfaz Moscou).
A Rússia passa a ter, na prática, um protetorado sobre a Crimeia, sem ter que pagar o preço político de uma anexação (que tampouco realizou na Abkasia e na Ossetia do Sul) e alcança seus objetivos estratégicos (que é o que lhe importa).
Os EUA ficam como "aliados" do novo governo ucraniano, cujos integrantes, no passado, sob as ordens de Iustchenko, não revelaram grande realismo político. Tal como no passado, vocalizarão esse apoio até o ponto em que isso não implique uma confrontação aberta e direta contra a outra superpotência nuclear.
A Ucrânia mantêm sua integridade territorial, mas sai perdendo na prática, na medida em que a Crimeia rompe, a rigor, o regime de estado unitário prevalecente na Ucrânia.
O pleito ucraniano se esvazia do ponto de vista estritamente jurídico.
E todos ficam mais ou menos felizes. Ou assim pelo menos parecerá.
Renato Marques
12/03/2014
Por Francisco Seixas da Costa
Teresa de Sousa é, de há muito, uma sagaz observadora das coisas internacionais. Tenho por ela um grande respeito e leio-a sempre com atenção e proveito. Hoje, no seu habitual artigo no "Público" (ser assinante permite-nos consultá-lo a esta hora matutina), suscita uma ideia interessante, resumida no próprio título do texto: "A Europa joga o seu destino na Crimeia". A tese central é a de que, face à atual tensão, e perante o grau de implicação que os americanos parece estarem dispostos a assumir, a Europa tem, na crise ucraniana, a oportunidade "da sua vida" para recuperar a sua relevância, a ser feita através de uma atitude comum, em consonância tática com Washington. O tom das conclusões do último Conselho Europeu anima a articulista, que delas também retira virtualidades para a sobrevivência e/ou reanimação da relação transatlântica,
Muitas vezes estou de acordo com Teresa de Sousa, mas não é este o caso. Acho que a avaliação feita daquilo que resultou da reunião dos chefes de Estado e governo da UE peca por "wishful thinking". A retórica unificada que saiu dessa reunião irá - não tenho disso a menor dúvida - esboroar-se a partir do momento em que a passagem a um estádio superior de medidas "punitivas" a Moscovo (que deverão ser propostas, porque tudo indica que a Rússia não vai ceder no essencial) venha a defrontar-se com as previsíveis reações retaliatórias do "outro lado". Nesse momento, os Estados europeus constatarão que, dentre eles, alguns sentirão mais do que outros o preço de uma quebra dos mecanismos de relação político-económica com a Federação Russa. E isso não deixará de ter consequências imediatas na sua unidade decisória, muito para além da conversa bruxelense, à qual Putin colocará a questão posta por Estaline face à condenação da sua política pela Santa Sé: "Quantas divisões tem o Papa?"
Posso estar enganado, mas tenho a sensação de que a Europa comunitária, com a sombra da NATO a ajudar, acabou por meter a Ucrânia numa "grande alhada". Fê-lo por alguma irresponsabilidade induzida essencialmente pelos Estados bálticos e alguns outros países da antiga "cortina de ferro" - a "nova Europa" de Donald Rumsfeld -, como reconhece Teresa de Sousa, ao falar da "obsessão desses países em continuarem a olhar a Rússia como uma ameaça".
Sei que me arrisco a ser visto como um perigoso "realista", mas nunca tive a menor ilusão sobre a possibilidade da Ucrânia poder exercer o seu pleno direito de opção estratégica. Há "soberanias limitadas"? Claro que há, porque a geografia não se improvisa. Que o diga Cuba.
Tenho hoje a firme convicção de que a Europa perdeu um ensejo precioso de desenhar um modelo de relacionamento "possível" com Kiev, porventura menos ambicioso mas bastante mais pragmático. Um modelo à medida do país muito particular, geopoliticamente falando, que a Ucrânia é e continuará a ser. A União Europeia não percebeu, ou não quis perceber, as lições que deveria ter retirado da atitude russa na crise da Geórgia - e, em especial, da "liberdade" então recuperada por Moscovo para reatuar com maior liberdade nas suas próprias "águas territoriais", em face da então mitigada reação de Washington, secundada pelo já então ineficaz gesticular europeu. Se o tivesse feito, não se deixando seduzir por uma agenda marcadamente anti-Moscovo, talvez tivesse ajudado Putin a reconhecer as vantagens de algum reconhecimento de "respeitabilidade" no plano internacional e apostado na sua adesão, pelo menos formal, a uma ordem global mais dialogada. Não o fez, "armou" em potência e agora resta-lhe "bombardear" Moscovo com comunicados e engrossar a voz.
Com a presente crise, que ameaça alguns dos seus interesses estratégicos essenciais - a alguém passou pela cabeça que Moscovo iria permitir a indução de riscos no seu acesso naval ao Mar Negro? -, a Rússia já mostrou que está disposta a pagar um preço forte na sua imagem. Nada que um poder essencialmente autoritário não possa comportar. Quem pode vir ainda a sofrer, no rescaldo desta crise, são os opositores internos a Putin, que cada vez mais se sentirá desobrigado de ter de fazer "de democrata". Perdido por cem...
Uma nota final. Se Bruxelas conta com a permanência da intransigência de Washington, no início de um tempo presidencial de fim de ciclo, pode muito bem vir a estar enganada: sem a ajuda prática da Rússia, os EUA não conseguirão retirar as suas tropas do Afeganistão no calendário previsto. E esse é um compromisso que Obama não pode falhar, porque é feito perante o único país que os Estados Unidos verdadeiramente respeitam: a América.
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