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O dia que durou 21 anos e o regime militar brasileiro de 1964-1985, por Gabriel Romero

Uma resenha provocativa de Gabriel Romero. Leiam e opinem.

O dia que durou 21 anos e o regime militar brasileiro de 1964-1985, por Gabriel Romero.

O que é bom para o Brasil, é bom para os Estados Unidos (1).

Juracy Magalhães.

A película O dia que durou 21 anos, documentário que se utiliza das fontes primárias classificadas secretas e ultrassecretas tornadas recentemente públicas pelo governo norte-americano, peca pelos excessos, e padece pelo tom ginasial de sua exegese histórica superficial. É, enfim, dicotômica porque indigente. O filme de Camilo Tavares revela como os Estados Unidos da América (EUA) colaboraram para o golpe militar de 1964, que derrubou o presidente brasileiro João Goulart.

Apesar de se postular inovador, o documentário definitivamente não traz à luz fatos eminentemente novos. Seu foco está na revelação das gravações de diálogos da Casa Branca de 1962 a 1964, e nas investidas da Casa Branco no sentido de incentivar e patrocinar o golpe de março de 1964 no Brasil. O tom de ineditismo do filme, contudo, não convive bem com isto: está largamente evidenciada em bibliografia pertinente a preocupação de Washington quanto à possibilidade de um golpe de estado ser protagonizado pela esquerda revolucionária brasileira.

No contexto da Guerra Fria, logo após Cuba se tornar socialista, o embaixador dos EUA no Brasil Lincoln Gordon retrata bem a situação num de seus telegramas para o presidente John Kennedy: “Se o Brasil for perdido, não será outra Cuba, mas outra China, em nosso hemisfério ocidental.” Mas em que medida a preocupação de Washington se consubstanciava com os interesses da direita política em empreender uma ruptura institucional no Brasil? Sem o apoio de Washington, o coup d’état não teria ocorrido?

Apesar da linha narrativa do documentário de Tavares convergir para uma resposta afirmativa a essa última indagação, os fatos históricos dos anos de 1963 e 64 certamente nos dão uma resposta muito mais complexa e divergente do que o simplismo que alguns apóstolos do coletivismo e do nacional-populismo tentam sustentar.

Senão vejamos. A película enfatiza as ações dos EUA, coordenadas pelo embaixador Gordon, para desestabilizar o governo Goulart, como o financiamento a institutos de pesquisa a exemplo do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e o IPES (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais), espécies de think tanks anti-Goulart, além de campanhas eleitorais de deputados e governadores opositores ao governo, e estímulo a greves e a publicação de artigos na imprensa com uma diretriz ideológica contrária às ações populistas do governo João Goulart. A CIA, ademais, possuía know how em desestabilizar regimes políticos na América Latina e alhures. No caso do Brasil, entretanto, as proporções e complexidades sociais eram uma razão inversa da efetividade das investidas do departamento de estado, de defesa e de inteligência dos EUA: o apoio à ruptura institucional de 1964 dado pelo governo norte-americano certamente não é a baliza explicativa mais relevante para o golpe militar no Brasil.

Nos anos sessentistas que precederam o 31 de março de 1964, nem a direita udenista, muito menos a esquerda petebista estavam dispostos a “jogar” segundo as regras democráticas. Apesar da existência de setores políticos, capitaneados principalmente por Francisco Santiago Dantas, preocupados em estabelecer projetos reformistas sociais e econômicos à luz do estado de direito democrático, as disputas políticas do período dos anos 1963 e 64 ensejaram um resultado quase inevitável. De um lado, as tensões sociais ensejadas pelas “reformas de base” propostas por Goulart, que afrontavam o Legislativo e a classe média; de outro, a percepção de setores das Forças Armadas que viam numa guinada institucional como a única forma de pôr termo ao início do conflito de luta de classes e da evidente deterioração institucional levadas a cabo pelo presidente Goulart. Desse embate culminou um resultado previsível: um golpe militar empreendido por um setor da direita que via a ruptura institucional como a única maneira de dar conta dos imbróglios produzidos por Goulart.  

Não é sensato, contudo, concluir que a Revolução de 1964 tinha como fito primordial evitar um golpe protagonizado por setores da esquerda, como da esquerda revolucionária stalinista que, no início da década de 1960, já empreendia lutas armadas. As razões, assim, são mais complexas, e foram originadas não só pela conjuntura internacional que lhe dava forma e alguma substância, mas pelo nível de tensão social e política interna que haviam sendo intensificadas no país. As razões para o golpe encontram respaldo, portanto, na necessidade que o estabelecimento de ações que reestabelecessem uma ordem social se fazia naquele momento, a despeito de ter sido cunhado como “Revolução” ou como “Contrarrevolução de 1964” pelos militares.

O documentário O dia que durou 21 anos não deixa de enfatizar a Operação Brother Sam. Não há novidade na existência do apoio dado pela Marinha dos EUA no golpe de 1964. Esse apoio foi, na verdade, solicitado pelos próprios militares que empreenderam a ruptura institucional no Brasil. Como um telegrama do Departamento de estado dos EUA para o embaixador Gordon descreve, a intenção era “dar assistência no momento adequado a forças anti-Goulart, se decidido que isso seja feito”. Ou seja: se o governo brasileiro encontrasse dificuldades em reestabelecer, logo após o golpe de estado, as ordens social e institucional no país, a força militar disponibilizada pela Marinha dos EUA poderia ser solicitada. Essa dificuldade poderia ocorrer se houvesse, principalmente, um recrudescimento da esquerda armada revolucionária, que, na realidade, nunca se furtou em empregar métodos terroristas, como o assassinato daqueles que entendessem contrários à revolução, para fazer valer seus objetivos.

Houve de certo um misconception do governo americano com relação ao cenário político de 1964. Isso fica claro, em áudio, quando o presidente americano, ao concordar em enviar navios de guerra para a costa brasileira, diz “vamos pôr nosso pescoço para fora. Faremos tudo o que precisarmos fazer”. A Operação Brother Sam não foi ao menos acionada. A junta militar, assim, encontrou pouca dificuldade para materializar sua ruptura político-institucional.

Após o sucesso da iniciativa, Gordon escreve aos EUA: “Tenho o enorme prazer de dizer que a eliminação de Goulart representa uma grande vitória para o mundo livre”. Não há dúvida disso. Para o próprio Brasil, a ruptura institucional que alçou o general Castelo Branco à presidência representava uma catarse. Os rumos depois de quatro anos de regime militar, contudo, foram outros, e a promessa de Castelo Branco a Juscelino Kubitschek, em 1964, de conduzir o país de volta a normalidade em poucos meses e apoiar Juscelino na eleição presidencial de 1965 não se concretizou. A ditadura, portanto, foi iniciada após a presidência de Castelo Branco.

Dessa forma, se é fático que a fase castelista do regime militar teve um caráter quase providencial, os regimes posteriores tiveram contornos mais distintos. Apesar de o tom acusatório da película recair quase exclusivamente nas violações aos direitos humanos que tomaram corpo após o início do período iniciado em 1964, o fracasso mais retumbante do regime militar brasileiro não se materializou em torturas e mortes de revolucionários e alguns inocentes, mas sim em seu projeto estratégico macroeconômico. Na realidade inclusive, o Brasil, no contexto latino-americano de golpes de estado e regimes ditatoriais, empreendeu uma repressão comparativamente “branda”, o que sob nenhuma hipótese a justifica.

Assim, em que pese a materialização de um projeto estratégico econômico de longo prazo e seus sucessos relativos, a insistência no intervencionismo estatal e no endividamento externo representa uma teimosia pelo insustentável por parte dos militares brasileiros, principalmente num período em que o Keynesianismo dava seus últimos suspiros e em que os liberais conjecturavam projetos que provariam a superioridade principiológica do Liberalismo diante das ideias estatizantes. Poderia o Brasil ter optado pelo caminho trilhado por Pinochet, no Chile, onde, na década de 1970, o liberalismo econômico de matriz Hayekiana e Friedmaniana, aos moldes inclusive dos defendidos por Roberto Campos, já ensaiava suas primeiras reformas, e cujo êxito serviria de esteio às experiências liberais a serem empreendidas por Thatcher e Reagan, anos depois.

Os projetos econômicos levados a cabo pelo regime dos militares após o governo Castelo Branco eram inconsistentes. Não visavam a reestruturar o sistema econômico-produtivo do país, com vistas a proporcionar um crescimento econômico sustentável e independente do financiamento externo, mas sim a manter, a todo custo, metas irreais de crescimento, a despeito de a realidade do cenário externo apresentar-se cada vez menos favorável. Paradoxalmente, pouco se alterou com relação ao projeto nacional-desenvolvimentista empreendido por governos anteriores ao regime de 1964 a 1985.

No plano externo, também não houve grandes inovações com relação ao implementado antes do regime. Há um retorno aos princípios da Política Externa Independente de Jânio Quadros e João Goulart, assim como ao alinhamento incondicional aos EUA no governo Castelo Branco, aos moldes dos feitos por Dutra, após 1945. Contudo, ampliou-se a relação de parceiros comerciais do Brasil no exterior, o que foi feito sem uma estratégia de reformas do sistema produtivo nacional e diminuição escalonada do protecionismo comercial, uma vez que os projetos econômicos da época tinham em vista apenas a supressão de alguns “gargalos” e a manutenção do crescimento econômico.  

Não há dúvidas, conquanto, acerca da competência dos militares em reestabelecer a ordem social da época, apesar da leniência com associações revolucionárias comunistas clandestinas, e em possibilitar algumas das bases para o retorno da democracia do país, vinte anos depois.

A falta de compreensão das reais consequências do regime militar, entendido por intelectuais “progressistas” e alguns setores da imprensa como a origem mais profunda do autoritarismo político e da inépcia policial, carcerária e educacional do país, ajudou a produzir uma sociedade antes revanchista do que democrática; antes preocupada num “acerto de contas” com supostos “malfeitores da pátria” do passado, do que em formular projetos de desenvolvimento econômico-social de longo prazo sustentados em matrizes minimamente liberais do ponto de vista econômico. Dessas contradições interpretativas emocionadas nasce o sentimento antiamericanista no Brasil ao qual a película O dia que durou 21 anos se soma.

O general Newton Cruz, chefe do SNI, acerta quase em cheio ao dizer: “quando a Revolução nasceu, era para fazer uma arrumação da casa. Ninguém passa 20 anos para arrumar a casa!” A razão do fracasso que o projeto do regime militar propôs é, em parte, relacionada a sua durabilidade. Essa duração, contudo, não se restringe apenas ao espaçamento entre o início e final do regime ditatorial, mas se estende até os dias de hoje.

Porque grande parte da elite intelectual do país não compreende as consequências do regime militar para o Brasil do presente, frequentemente recaindo nas afrontas aos direitos humanos (até por má-fé, em face dos benefícios bilionários concedidos pelo “bolsa-ditadura”, que já concedeu, até hoje, quase 3 bilhões de reais a supostos prejudicados pelo regime!), vive-se, em parte, naquele período. Ou melhor: vive-se daquele período. Além disso, o governo opta por manter arquivados grande parte dos documentos da época, o que se explica, parcialmente, pelas informações que seriam trazidas à baila acerca de crimes perpetrados por indivíduos que pegaram em armas no passado e, hoje, estão à frente do estado.

O empreendimento de sucesso duvidoso de Tavares, antes de ajudar a iluminar o passado com explicações coerentes que se pretendam sustentadas, age no sentido de munir alguns rancores, e de pintar alguns vilões trajados de farda e outros de língua anglofônica. Ao invés de contemplarmos o passado para instrumentalizar o presente e o futuro com projetos assentados sobre a realidade nacional do país, ainda damos crédito a caricaturas antiamericanistas que se postulam documentais. Compreender nossa História recente, além das contingências que a impuseram e os benefícios e malefícios que ela proporcionou, é o mesmo que dela se libertar. Para tanto, é necessário refletir sobre o significado do passado. É imperioso, portanto, pensar a História como uma reconstrução intelectual da realidade, e nos ingagar: podemos refletir sobre nossa História de maneira sensata e não-apaixonada de forma a não culpabilizar vilões, mas extrair lições?

_________

(1) Juracy Magalhães foi militar revolucionário de 1964, então designado embaixador em Washington logo após o golpe. Perguntado por um repórter com que espírito assumia o posto, ele afirmou: “O Brasil fez duas guerras como aliado dos Estados Unidos e nunca se arrependeu. Por isso eu digo que é o que bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil” (cf. Juracy Magalhães, em depoimento a J. A. Gueiros, O Último Tenente. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1996, p. 325). Contudo, o termo que ganhou notoriedade foi o plasmado em nossa epígrafe. Declarações que melindravam sentimentos antiamericanistas sempre tiveram maior potencial de venda de jornais do que a verdade real dos fatos.

Comentários

Anônimo disse…
Baixar o Documentário - O Dia que Durou 21 Anos - Com documentos e imagens inéditos da conspiração que derrubou o presidente João Goulart, com a participação do Governo dos EUA - http://mcaf.ee/3fjuv

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