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Memórias do Barão do Rio Branco, por ele mesmo

O professor, diplomata e, sobretudo professor Paulo Roberto de Almeida (que gosto de considerar um amigo) nos presenteou por ocasião do centenário da morte do Barão do Rio Branco com o inicio da série – quiçá mais um livro do professor – em que transcreve memórias escritas pelo próprio Barão que foram encontradas entre seus papeis.

Nesse particular recomendo a leitura de nota explicativa a cerca da metodologia empregada na atualização ortográfica e na organização dos escritos. Que está disponível aqui.

Transcrevo na íntegra do que é encontrado no blog do professor e o faço com autorização. Original pode ser lido aqui. Não é preciso dizer que aguardo ansioso o desfecho dessa série. Espero que leiam não é sempre que uma figura histórica nos oferece uma janela ao seu pensamento.

Memórias do Barão do Rio Branco

Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.

Porque decidi escrever estas memórias?

Escritores são, em geral, fantasistas notórios; alguns deles, inclusive, chegam a ser mentirosos, o que, aliás, é próprio do seu ofício. Por isso, decidi rabiscar eu mesmo estas linhas, resumindo, embora a largos traços, a minha vida. Mirando-a retrospectivamente, não posso deixar de julgá-la bem-vivida, até agraciada pela Sorte, essa madrasta que nos persegue os passos, pensando causar-nos troças a cada etapa de nosso itinerário terrestre. Mas não pretendo lhe deixar esse prazer: ubique, eu mesmo cuido de minhas memórias, sobretudo se elas tratam da pátria!

Por que o faço agora? Porque, justamente, quero registrar de meu próprio punho uma longa trajetória de vida, antes que algum desses áulicos que me seguem fielmente no meu reduto diplomático, ou que alguns, dentre os muitos jornalistas que me têm apreço nos pasquins e mesmo nos jornalões cariocas, decidam empreender, eles mesmos, alguma biografia não autorizada. Qualquer que seja seu caráter, simpática ou não ao que venho fazendo para engrandecer a pátria, acredito que ela não será muito fiel ao que penso deva ser um relato seletivo da minha vida e das minhas atividades à frente do único ministério capaz de fazer orgulho a um Brasil nem sempre admirado no cenário internacional. Mas, confessemos, cá entre nós: esta nossa Casa, que nos velhos tempos do Império se chamava Repartição dos Negócios Estrangeiros,de tão nobre memória, sempre foi a maior admiradora de si mesma...

Também o faço porque alguns dos meus colaboradores, e até os senadores da República, vêm se mostrando incomodados com a falta de relatórios da minha gestão à frente do Itamaraty, uma decisão que tomei desde o dia da posse, naquele, agora longínquo, dia de dezembro de1902, numa das mais importantes inversões da minha já longa trajetória de vida.Sete anos atrás, não sabia se era justa a minha decisão de trocar a absorvente vida diplomática na capital da Alemanha imperial por esta cidade ainda cheia de mosquitos, de doenças endêmicas, com sua quota excessiva de miasmas, o que me obriga a subir regularmente a serra em direção ao meu chalé de montanha.

Não pretendo desculpar-me com meus colegas diplomatas pela falta dos relatórios anuais: pelo menos não corro o risco de lhes amarrotar a autoestima. Por isso, deixo o julgamento definitivo de meus atos aos historiadores do futuro, que por certo saberão encontrar o que buscam nos muitos documentos já acumulados em minha gestão; talvez até encontrem estas memórias – que não sei bem quando terminarei – entre as pilhas de papéis que locupletam, na mais perfeita desordem, as várias mesas de meu gabinete. On n’est jamais si bien servi que parsoi-même. Mais, passons...

Também quero deixar agora consignadas,neste mês de abril de 1909, as razões que me levaram a recusar, de maneira peremptória, firme e irrevogável, o generoso oferecimento de uma candidatura,praticamente vitoriosa, à presidência da República, certamente o cargo mais honroso que um homem público pode desejar, em qualquer país, em qualquer época.Confesso, tanto intimamente, quanto aos que lerem estas linhas em algum tempo do futuro, que não tenho a menor vontade – não digo de disputar eleições, já que estas, no Brasil, são feitas a bico de pena, e o candidato saído da convenção dos congressistas já é uma aceitação nacional – de assumir um cargo que me obrigará a tratar com os mesmos políticos que, no íntimo, eu desprezo, que considero particularmente medíocres ou que julgo incapazes e incompetentes para conduzir um Brasil atrasado à posição que ele mereceria ocupar na cena internacional.

O próximo presidente da República será, provavelmente, esse marechal teimoso como uma mula, mas timorato nas decisões, e que hesitou diversas vezes em lançar-se ao cargo, quando todos sabem que minhas preferências – a despeito das diferenças que acumulamos desde a conferência da Haia – estariam naquele brilhante advogado baiano, arrogante e vaidoso em suas pretensões de jurista internacionalista, ainda assim melhor preparado do que a mula fardada que se prepara para dirigir um país difícil como o Brasil. E talvez eu já não tenha mais forças para fazê-lo...

Minha aspiração – sem pretender chocar os que lerem estas minhas memórias desabusadas, algumas décadas mais à frente – é a de que o Brasil possa dispor, no futuro, de homens políticos mais bem preparados para o cargo, tribunos competentes e educados, estadistas comprometidos com a dignidade das causas nacionais, sem essas nódoas de corrupção que nos maculam internacionalmente, sem o peso da ignorância abissal que infelizmente ainda marca muitos dos aventureiros e oportunistas que procuram cargos públicos, alguns inclusive por razões inconfessáveis. No momento, quero apenas estar em paz com minha consciência, mesmo sabendo que minha recusa em aceitar a candidatura à presidência praticamente colocará nesse mais alto cargo da República, em lugar de um jurista pretensioso, um militar que pode aprofundar o desmantelamento de nossas instituições de Estado, propenso como ele parece ser a continuar com essas viciosas políticas de intervenções nos estados. Não quero ser parte dessas vergonhas nacionais e pretendo encerrar minha gestão tão pronto o presidente Affonso Penna apenas termine a sua. Tenho ainda a resolver negociações já em curso de tratados de limites com o Peru e como Paraguai, e antecipo uma concessão adicional ao Uruguai, para dar por encerrada minha obra de fixação definitiva de todas as nossas fronteiras. Depois disso abandono fraques e polainas, tão incômodos no calor carioca, e coloco definitivamente as chinelas...

O que tenho a dizer sobre a minha maior obra diplomática?

Não me cabe, em causa própria, relatar tudo o que fiz, desde a primeira questão de arbitragem contra nossos vizinhos platinos, passando por todos os outros casos de limites, arbitrados ou negociados, ao longo dos primeiros anos da República, ou como ministro da mesma nos últimos sete anos. A vida me deu muito mais do que eu poderia querer, já que minha intenção, enquanto ainda estava em Liverpool – por obra e graça da princesa regente, diga-se de passagem, pois seu pai imperador nunca me designou para nada –, era juntar dinheiro suficiente para comprar uma fazendola de café no interior de São Paulo, juntar os meus livros de história e passar o resto dos meus dias especulando com o nosso “ouro negro” e, finalmente, terminar aminha prometida história militar e diplomática do saudoso Império.

Quis a História, essa outra madrasta sempre misteriosa e tão cheia de surpresas, que não fosse assim: a morte infeliz do primeiro negociador do território das missões me tirou de um plácido esquecimento em Liverpool – na verdade, trocada frequentemente pela mais vibrante capital francesa –para me jogar no centro da mais importante questão de limites a dividir castelhanos e portugueses desde os tempos coloniais,problemas nunca resolvidos satisfatoriamente pelos tratados de Madri, de ElPardo e Santo Ildefonso. Além da justeza das nossas posições, bem fundamentadas na documentação colonial – parte da qual coletada décadas antes por Ponte Ribeiro em suas andanças sul-americanas – creio que o Brasil foi beneficiado pela simpatia natural que o presidente da grande república do Norte tinha pelas ua contraparte no hemisfério meridional. Depois, apoiado no meu primeiro sucesso diplomático, fui novamente convocado a servir ao país, desta vez enfrentando os franceses, na chamada questão do Oiapoque: confesso ter me utilizado de todos os meios disponíveis, inclusive os menos confessáveis, facilitados pelo amigo Emilio Goeldi, em Berna, para colocar o presidente da neutra Confederação do nosso lado, a despeito dos laços tradicionais de amizade que uniam a Suíça à França vizinha, em especial desde os tempos de Napoleão.

O cansaço físico e o desejo de, por uma vez, gozar de uma vida diplomática normal – já que eu tinha sido apenas cônsul por longos anos – me impeliram a recusar uma nova arbitragem nas fronteiras do norte, desta vez contra a pérfida Albion, que pretendia abocanhar boa parte do nosso território amazônico para incorporar à sua Guiana. Indiquei para a tarefa o meu amigo dos tempos monárquicos, Quincas Nabuco, e procurei ajudá-lo em tudo o que estivesse em meu alcance. Mal sabia eu que a aceitação do rei da Itália como árbitro iria trazer-nos tantos dissabores, já que Vitório Emanuel agiu franca e desonestamente em favor da Grã-Bretanha, subtraindo-nos milhares de quilômetros quadrados a que tínhamos direito, pela força dos braços e pernas dos nossos exploradores lusitanos e pelos traçados detalhados dos cartógrafos que lhes seguiram.

Foi por isso que no próximo caso que se me apresentou – já nos preparativos para assumir o ministério, a que relutantemente acedi depois de muita insistência de Rodrigues Alves – decidi não mais recorrer a essas arriscada arbitragens, preferindo entabular negociações diretas com os volúveis bolivianos, que nesses tempos andavam cedendo sua soberania nacional a sindicatos de aventureiros imperialistas. Para tanto, reuni, na tarefa de ajudar-me a construir o caso do Brasil, uma penca de jovens diplomatas ambiciosos, tendo, no entanto, de dispensar os serviços domais experiente Oliveira Lima, um espírito por demais cheio de si para consentir auxiliar-me junto aos peruanos, inquietos com o que se lhes podia virem prejuízo, dada minha intenção de separar as duas questões. Mas, dessa e de outras negociações de limites eu tratarei mais adiante, bastando-me mencionar agora que encontrei o ministério bem cuidado, sob o olhar vigilante, mesmo se cansado, do velho Cabo Frio, ainda que excessivamente vetusto nas maneiras e conservador nas suas práticas, necessitando ademais de alguns empurrões aqui e ali para mostrar do que o Brasil era capaz, nas Américas e no mundo.

Felizmente Campos Salles e Murtinho realizaram oportuna obra saneadora de nossas finanças, o que me habilitou a requisitar novos meios e fundos públicos para investir num mais do que bem-vindo processo de modernização deste velho ministério de tradições ainda muito lusitanas. Com o sempre, a velha Albion fornece o modelo ideal segundo o qual deveria funcionar nossa diplomacia, já que o seu Foreign Office é, por outras vias, uma verdadeira “esquadra inglesa”.

Sobre isso falarei um outro dia...

Petrópolis, 20 de Abril de 1909

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