Nesses tempos em que a internet – sobretudo os fóruns de debate – está inundada com opiniões estridentes e radicais e ofensas a quem pensa diferente é sempre um alento ler uma análise sóbria e serena como essa do embaixador português, em França, Francisco Seixas da Costa.
Texto transcrito tal qual o original (que pode ser lido aqui) e com autorização do autor.
Síria e Kosovo
Por Francisco Seixas da Costa
Na sexta-feira, estive presente na cerimónia que, em Paris, assinalou o 4º aniversário da independência do Kosovo, uma realidade política até hoje reconhecida por 88 países, entre os quais 22 da União Europeia, incluindo Portugal.
Não pude deixar de recordar-me, na ocasião, que o Kosovo talvez hoje deva a sua existência à intervenção militar promovida pela NATO, em 1999, feita à revelia de qualquer legitimação do Conselho de Segurança da ONU, então bloqueado pela obstinação russa e chinesa. Uma ação discutível mas que, para largos setores da comunidade internacional, se justificou por ser talvez a única forma de suster a repressão sangrenta das forças sérvias sobre a população kosovar.
A atual crise síria evoca, naturalmente, o caso do Kosovo. Também agora largos setores da opinião pública internacional sentem que se está perante um verdadeiro escândalo: a completa impunidade de uma ação impiedosa de um regime sobre a sua própria população. E, uma vez mais, a oposição russa e chinesa no Conselho de Segurança está presente. Só que, nesta conjuntura, o quadro geopolítico não aponta no sentido de alguns países poderem ser tentados a agir militarmente, mesmo sem o conforto da legitimidade multilateral.
Alguns tentam "perceber" as razões formais da Rússia e da China, ao não darem luz verde para uma pressão constrangente sobre Damasco: os ocidentais mostraram, na Líbia, que a resolução 1973 foi "abusada" e que, da imposição de uma "no fly zone", se passou rapidamente para um processo de "regime change", que não estava previsto no mandato onusino. E ambos os países também temem que, por esta via, comece a consagrar-se um "direito de ingerência", princípio que sempre recusaram, pela utilização alargada e sem controlo que dele pode fazer-se. Razões discutíveis mas arguíveis, no plano dos princípios.
O que a Rússia e a China parece não perceberem é que, ao não partilharem, em situações graves como estas, as preocupações de grande parte do mundo, além de ficarem ligados, inapelavelmente, aos fautores das barbáries, contribuem para condenar a ONU a uma irrelevância que degrada a sua imagem e legitimidade. De bloqueio em bloqueio, vão dando razões a quantos acham, às vezes por motivos que não são os melhores, que, em situações limite, é preciso "ir a jogo", ultrapassando os impasses onusinos. E que assim se cria, na opinião pública internacional, um ambiente de crescente condescendência face a possíveis ações unilaterais, sem limites nem mandatos, que possam pôr cobro a situações de flagrante escândalo humanitário.
Comentários
Bom, belo texto!
O fato é que a ONU, apesar das boas intenções da maior parte de seus funcionários, é financiada pelas grandes potências e isso faz com que ela em diversas situações tenha que ceder ( e muito ) para continuar operando. A imagem dela vem se denegrindo há algum tempo, situaçõs como Ruanda e Somália nos anos 1990 e Iraque em 2003, contribuíram para essa ocorrência. Principalmente o último em que os E.U.A invadiram o Iraque sem o consentimento da organização e logo após a mesma teve que dar apoio ao país no Iraque e o fim da história acho que já sabemos bem ( diversos funcionários da ONU mortos, violencia extrema no Iraque e um atoleiro em que os E.U.A tentam sair e não conseguem, fora que a situação no Iraque ainda é caótica.)
Abraços