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“Primavera Árabe”, eleições e nudez no Egito

Fui perguntado durante minha palestra no FOCO RI, em setembro, sobre a chamada “Primavera Árabe” e lá repeti o que sempre escrevo por aqui. Que o processo está em desenvolvimento o que requer calma e frieza ao analista, posto que é preciso separar as esperanças eventuais que tenhamos sobre um desfecho da onda de mudança de regimes e o que as evidências e a lógica nos permitem dizer com segurança. Além disso, lembrei que não gosto da denominação “Primavera” usada pela imprensa.

Essa objeção tem por fato uma superstição, logo irracional por definição, que nutro que é uma rejeição ao rótulo primavera, muito por conta do desfecho tão sombrio da “Primavera de Praga”.

Desde o primeiro texto que escrevi (ou seria cometi?) sobre o tema que insisto em lembrar que o resultado de cada uma das revoluções que ocorrem agora no mundo Árabe e no Norte da África dependeria de fatores locais e da importância estratégica de cada país. Seria inocência negar que há uma correlação entre a importância estratégica e o grau de engajamento das potências regionais e extra-regionais no conflito. Contudo, ainda creio que são as condições locais no solo mais determinantes nesse sentido.

O Egito é um caso exemplar das dificuldades de se prever um cenário “final” dessa chamada primavera. É impossível garantir que o processo por lá terminará na construção de uma democracia (de características locais, é claro), ou num regime de inspiração islamista, ou mesmo na pura e simples manutenção do regime militar, só que dessa vez não personalizado em figuras de proa poderosas como Nasser ou mesmo Mubarak.

Os resultados parciais do primeiro turno das eleições legislativas mostram vitória de grupos que usam o que se costuma chamar de Islã Político, ou seja, partidos que tendem a serem conservadores. O que em si não é problema se esses partidos tiverem o respeito aos princípios básicos de uma democracia entre seus valores. E sobre isso resta muita especulação.

Qualquer relato sobre a sociedade egípcia mostra que essa é uma sociedade complexa em que convivem diversas correntes de opinião muito além do tradicional corte entre cristãos minoritários e uma maioria de muçulmanos. Embora seja importante entender o papel dos cristãos cooptas que são aliados do regime militar em muito pela garantia de secularidade e proteção que esse regime garantia a esses grupos.

Mas, entre os muçulmanos como disse acima existem diversos grupos de opinião política e um episódio recente serve para ilustrar o grau de animosidade que há entre esses grupos.

Uma ativista dos Direitos da Mulher, de origem muçulmana, mas que se declara atéia, chamada Aliaa Elmahdy talvez cansada do notório assédio sexual que as mulheres sofrem no Egito, talvez em busca de visibilidade para sua causa por meio do choque, ou talvez inspirada artisticamente ou muito provavelmente por todos esses fatores e outros mais decidiu postar em blog da internet fotos suas nuas.

A foto é o que as “modelos e atrizes” que povoam os sites de celebridades diriam ser: “de muito bom gosto e artística”. Na verdade é um nu que ganha força pelo olhar compenetrado desafiador que em certa medida desvia atenção do corpo nu da jovem moça, é um olhar forte, generoso e corajoso (bom são impressões minhas sobre isso, mas não tenha a alma assim tão artística, vocês podem avaliar por vocês mesmo aqui).

Junto a foto vai uma declaração em árabe com sua tradução para o inglês:

“Put on trial the artists' models who posed nude for art schools until the early 70s, hide the art books and destroy the nude statues of antiquity, then undress and stand before a mirror and burn your bodies that you despise to forever rid yourselves of your sexual hangups before you direct your humiliation and chauvinism and dare to try to deny me my freedom of expression”

[“Levem aos tribunais os modelos que posaram nus para escolas de arte até o começo dos anos de 1970, escondam os livros de arte e destruam as estátuas desnudas da antiguidade e então se dispam e diante de um espelho queimem seus corpos que tanto desprezam e livrem-se para sempre de seus complexos sexuais antes de destinarem a mim suas ofensas e chauvinismo e atrevam-se a negar meu direito de expressão” ](tradução minha).

Claro, que um gesto de rebeldia sexual (fora o grande tabu da apostasia nas sociedades islâmicas) como esse daria inicio a um debate intenso num país que ainda vive sobre um regime fechado não muito acostumado a debater e lidar com as diferenças de opinião. Esse debate recheado de ameaças de morte mostra que o caminho da conciliação será longo para a sociedade egípcia e mais que vários setores interpretam os eventos libertários da Praça Tahrir de maneiras bem distintas.

Os resultados das eleições nos darão pistas para mapear as correntes de opinião do Egito, mas como mostra o caso da jovem Aliaa, ainda é muito cedo para decretar que o desfecho dessa revolução será um regime democrático. E é caso de nos lembrarmos de como são complicados os períodos de transição.

Claro que pode ser um alento para os que como eu acreditam na democracia o fato de o debate e das fotos de Aliaa estarem ocorrendo, mas falta muito pra acreditar que essa “Primavera” irá realmente vicejar.

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