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Novo Regime Automotivo, velho protecionismo

[O texto ficou longo, mas vale à pena, coragem]

Ontem o governo federal anunciou o “Novo regime Automotivo” que elevou em 30 pontos percentuais a alíquota do IPI pago para os automóveis comercializados em território nacional, contudo as montadoras que provarem entre outras coisas um mínimo 65% de conteúdo nacional ou regional – MERCOSUL - em 80% dos veículos produzidos no Brasil, e investimentos da ordem de 0,5% da receita bruta descontada dos impostos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) receberão isenção dessa nova alíquota.

Oficialmente a medida tem como objetivo: Proteger empregos do setor, incentivar a pesquisa e desenvolvimento e evitar a desarticulação dessa cadeia produtiva. Contudo, é claro o objetivo de manter a reserva de mercado brasileiro para as empresas que aqui produzem e assim evita concorrência externa sem ter que alterar a estrutura do setor. E adivinhem quem será chamado a pagar a conta? Claro, todos nós consumidores. Por que não adianta o governo dizer que irá vigiar o preço das montadoras beneficiadas. O fato é que elas estavam perdendo mercado, por ofereciam produtos piores e mais caros.

Esse aumento do IPI tem então um endereço certo as montadoras coreanas e chinesas que não possuem fábricas no Brasil e conforme informa o Estadão:

“Mercadante afirmou que o aumento do IPI também é uma importante sinalização para o mercado de automóveis no mundo. Quem quiser se aproveitar do patrimônio do mercado consumidor brasileiro, terá que vir para o Brasil com tecnologia. "Mesmo porque, lá fora não tem muitas opções", ressaltou Mercadante. Ele disse que a medida é criativa nesse cenário atual internacional adverso. O ministro informou que a ação já contempla um "pequeno compromisso" das empresas em pesquisa e desenvolvimento.”

Notaram o forte viés nacionalista que quer salvar o pobre consumidor brasileiro do aventureiro estrangeiro que ousa ofertar um produto barato. Pois bem, isso tem implicações internacionais.

O Brasil é signatário de vários acordos comerciais, inclusive do GATT 1994 que é o texto base da Organização Mundial do Comércio e compõem os documentos resultantes da famosa rodada de negociações Rodada Uruguai, entre os vários instrumentos presente nesse acordo há um especial para regular as Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio, acordo conhecido no meio das relações internacionais por sua sigla, em inglês, TRIMS.

O artigo 2º do TRIM diz:

“Artigo 2 – Tratamento Nacional e Restrições Quantitativas

1. Sem prejuízo de outros direitos e obrigações sob o GATT 1994, nenhum Membro aplicará qualquer TRIM incompatível com as disposições do Artigo III ou do Artigo XI do GATT 1994.

2. Uma lista ilustrativa de TRIMs incompatíveis com a obrigação e tratamento nacional prevista no parágrafo 4 do Artigo III do GATT 1994 e com a obrigação de eliminação geral de restrições quantitativas prevista no parágrafo 1 do Artigo XI do GATT 1994 se encontra no Anexo ao presente Acordo.”

Interessante nesse caso consulta a lista ilustrativa referida no parágrafo 2, do Artigo 2º do TRIMS, onde se lê:

ANEXO – Lista Ilustrativa

1. As TRIMS incompatíveis com a obrigação de tratamento nacional prevista no parágrafo 4 do Artigo III do GATT 1994 incluem as mandatórias ou aquelas aplicáveis sob a lei nacional ou decisões administrativas, ou cujo cumprimento é necessário para se obter uma vantagem e que determinam:

a) que uma empresa adquira ou utilize produtos de origem nacional ou de qualquer fonte nacional especificadas em termos de produtos individuais, em termos de volume ou valor de produtos, ou em termos de uma proporção do volume ou valor de sua produção local;

b) que a aquisição ou utilização de produtos importados por uma empresa limite-se a um montante relacionado ao volume ou valor de sua produção local.

E para que não digam que omiti vamos ao que diz o Artigo III do GATT 1994. (Para que o texto não se alongue muito vou transcrever parágrafos selecionados ao final dou a fonte de todas essas citações.)

GATT 1994

ARTIGO III – TRATAMENTO NACIONAL NO TOCANTE A TRIBUTAÇÃO E REGULAMENTAÇÃO INTERNAS.

1. As Partes Contratantes reconhecem que os impostos e outros tributos internos, assim como leis, regulamentos e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição ou utilização de produtos no mercado interno e as regulamentações sobre medidas quantitativas internas que exijam a mistura, a transformação ou utilização de produtos, em quantidade e proporções especificadas, não devem ser aplicados a produtos importados ou nacionais, de modo a proteger a produção nacional

[...]

4. Os produtos de território de uma Parte Contratante que entrem no território de outra Parte Contratante não usufruirão tratamento menos favorável que o concedido a produtos similares de origem nacional, no que diz respeito às leis, regulamento e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição e utilização no mercado interno. Os dispositivos deste parágrafo não impedirão a aplicação de tarifas de transporte internas diferenciais, desde que se baseiem exclusivamente na operação econômica dos meios de transporte e não na nacionalidade do produto.

Fonte: Ministério da Industria, Desenvolvimento e Comércio

Resta claro que não obstante justificativas oficiais e manobras argumentativas que se trata de uma medida contrária ao espírito e a letra da lei do comércio internacional e, portanto, protecionista.

Mas, por que o governo investe tanto esforço e publicidade numa política que cedo ou tarde será alvo de um contencioso na OMC, que mais arrisca a liderança negocial brasileira nas rodadas comerciais e que colocam mais um prego no caixão da Rodada Doha?

A resposta é simples, a meu ver, de uma só canetada o governo contempla grandes empresas multinacionais e sindicatos, ou seja, doadores de campanha e mão-de-obra eleitoral. Isso sem ter que encarar um doloroso processo de reforma tributária e sem correr o risco de animar ainda mais a brasa da inflação com uma repetição do rebaixamento do IPI que vimos no auge da “marolinha” de 2008. Além do mais o viés nacionalista agrada aos observadores mais alheios que tendem a acreditar fielmente na tese da cobiça estrangeira. Aliás, por sinal, escrevi nesse sentido, em 24 de agosto de 2010:

O nacionalismo é usado pelos grupos que advogam o protecionismo para que não tenham que dizer que as medidas visam proteger lucros de empresários que por vários motivos são ineficientes ante os competidores externos. Durante anos os empresários apontaram o “custo Brasil” como vilão da economia brasileira e de fato continua a ser o vilão, contudo é mais fácil amealhar o apoio da população e dos políticos gritando “China, China” como o menino gritava Lobo em nome do aumento de barreiras externas. E muito mais fácil acusar o protecionismo dos “loiros de olhos azuis” quando clamando por aumento de financiamento público, via BNDES. Nesse sentido o artigo de professor de economia da PUC-RIO, Dr. Marcelo de Paiva Abreu, no “O Estado de São Paulo” dia 23 de agosto é uma importante peça para analisar essa tendência.

É fácil imaginar quem será chamado a pagar a conta desse nacionalismo econômico, quem arcará com o custo do Brasil grande, do recém achado amor ao verde e amarelo. Sim, isso mesmo todos nós, seja em nosso papel de contribuinte (arcando com o BNDES) seja em nosso papel de consumidor (privado de comprar mais barato em nome da Soberania).

É meus caros o Regime Automotivo é novo, mas o protecionismo, bem esse é o velho de sempre. Agora me digam faz sentido espoliar o consumidor brasileiro com produtos inferiores por preços elevados para que montadoras possam enviar lucros as suas matrizes em nome do nacionalismo?

Comentários

Ravi Barros disse…
E o povo pagando o pato como sempre. A gente que trabalha vive pra bancar boa vida ao governo, enfim... tenho preguiça de falar dessa bagunça que é o Brasil!
Costumo dizer que carro popular é o carro usado (nem me venham dizer que um carro custando 30 mil é popular...), então na pior das hipóteses, mesmo que esse imposto acabe tendo que ser estendido aos nacionais, a maior parcela da população não seria afetada. Mas é claro que tem um viés protecionista descarado, e logo vão bater à porta da OMC pra reclamar. O Brasil precisaria se movimentar urgentemente pra buscar uma conciliação e rever essa medida antes que a paciência lá de fora se esgote.

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