Ontem Organizações Não-Governamentais ligadas (ou pelo menos assim se representam) a proteção dos Direitos dos Povos Indígenas apresentaram um documento (datado de 1º de abril) emitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, assinado pelo secretário-executivo Santiago Canton.
Esse documento expressa a preocupação da referida comissão com a construção da menina dos olhos do PAC a mega-hidroelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no estado do Pará. E mais faz séria censura à metodologia usada nas consultas públicas as populações afetadas e insta o Brasil a adotar medidas que “garantir a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas”.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é órgão consultivo a Assembléia Geral da OEA e suas recomendações e relatórios não possuem caráter coercitivo, isto é, esse órgão não tem poder para impor uma medida judicial obrigatória aos membros da OEA. Essa função é feita pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Essa diferenciação é importante para entender o caráter da disputa.
Isso por que embora a Comissão tenha o poder e o mandato para revisar as leis e práticas dos Estados-membros, inclusive em loco, no que tange a aplicação dos preceitos da Convenção Americana sobre os Direitos humanos e da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e de solicitar junto a Corte Interamericana a adoção de medidas cautelares que visem corrigir violações suas sugestões não possuem o caráter de medida judicial. A Comissão não emite ordens que devam ser acatadas pelos Estados-Membros.
Muito mais que jurídica a batalha é política e de certo modo emblemática do poder que os chamados “novos atores” adquiriram no sistema internacional. Afinal, foram as redes opinião transnacionais e privadas que desencadearam o processo, em outras palavras foram as ONGs que agem na região que mobilizaram o apoio da comissão. Ou seja, vemos o ator mais tradicional das relações internacionais sendo obrigado a interagir com entes não estatais. Claro, que as teorias das Relações Internacionais e os métodos de análise (como a análise em redes) há muito já prevêem essa possibilidade e existência. Mas, de certo modo esse caso pode ser exemplar de como interesses e grupos de opinião influenciam o sistema e desta feita com eficiência maior que a diplomacia estatal. Essa manifestação da Comissão mostra quão influente são as ONGs e a chamada causa indígena é em seu espaço.
A causa indígena é alimentada por fatores reais, isto é, o preconceito e as dificuldades materiais e culturais enfrentadas pelos membros dessas comunidades tradicionais e por fatores ideacionais que tem como base a reparação de males e violações comedidas por gerações anteriores. Essa junção poderosa é muito bem usada em causas políticas, principalmente nos países andinos, e arregimenta nomes poderosos (e um pouco deslocados da realidade local que julgam proteger) da indústria cultural. Isso faz essa causa bem visível e até se torna sinal de status em determinados círculos defender e doar dinheiro a essas ONGs.
Mas, a questão vai muito mais fundo que os debates filosóficos sobre a natureza do apoio uma vez que falamos de políticas públicas práticas e limitadas pelas leis e pela contingência orçamentária. Ou seja, falamos de grupos de interesses especiais se enfrentando, notadamente os grupos que defendem que a necessidade estratégica por energia e desenvolvimento tem prioridade sobre interesses locais antropológicos.
Por outro lado há o grupo que prega que a manutenção do patrimônio imaterial da humanidade e da diversidade cultural se sobrepõe ao egoísmo capitalista em busca de energia para alimentar o sistema produtivo que é a fonte de todas as desigualdades e males.
Há ainda os ecologistas que falam da tragédia que seria a construção da represa que alimentará a usina e os que defendem essa fonte como alternativa viável e desejável a queima nociva de combustíveis fósseis.
Uma coisa que é preciso saber é que há um tremendo exagero em todos os lados e a relatórios e números para todos os lados o que dificulta muito tomar uma posição sobre a usina em si. Sem contar às suspeitas que cercam o certame que definiu o consórcio de construtoras que vai tocar o projeto. (Uma pesquisa na internet mostrará reportagens apontando toda sorte de problemas). Por isso mesmo me concentro na questão política na OEA
O governo brasileiro foi pego de surpreso por essa decisão, não resta dúvidas ainda mais depois da declaração do ministro Patriota de que o governo prepara uma resposta “ainda mais oficial”. Isso levanta questões sobre a eficiência da Missão Permanente do Brasil junto a OEA que não percebeu essa movimentação. O Itamaraty não pode ser blindsided desse jeito.
Cheguei a comentar na internet e privadamente que iniciava a contagem regressiva para alguém comparasse essa situação a do voto para iniciar investigações de violações no Irã. Mas, essa comparação ignora que a OEA se preocupou com uma questão de ameaça de dano e a ONU investiga violações já ocorridas. Pode não parecer, mas é uma enorme diferença.
Pois a OEA não “censura” ou “condena” o Brasil e sim solicita ações que visem evitar violações, ou melhor, supostas violações futuras. Já no Irã se trata de violações em prática e baseadas em leis e práticas jurídicas.
De todo modo a ação mostra que na batalha por imagem, por prestigio no sistema interamericano o Brasil sofreu uma dura derrota, que pode afetar nossa posição em questões como mudanças climáticas, daí a resposta veemente na nota oficial que chega a classificar as solicitações da Comissão “precipitadas e injustificáveis”. Se alguém estiver anotando o placar pode colocar um ponto para as ONGs indigenistas.
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