A situação em Côte d’Ivoire continua tensa e há relatos de confrontos entre os militantes do presidente derrotado nas eleições que se recusa a sair Laurent Gbagbo. O texto a seguir reflete sobre o tema com bases amplas e trata de algo que vez ou outra surge aqui que é o relativismo cultural como desculpa conveniente para se transigir com regimes autoritários. Claro, que esse relativismo “alter-mundista” dá a essa conivência com autocratas uma capa de humanismo esclarecido.
Esse texto foi retirado do blog ‘Duas ou três coisas’ do embaixador português em França (ex-embaixador em Brasília, onde eu o conheci) Francisco Seixas da Costa, que é figura fácil nessa seção Ler, Refletir e Pensar.
Costa do Marfim
O sentido dos acontecimentos na Costa do Marfim parece apontar, finalmente, para que Allassane Ouattara venha a assumir a presidência, depois de um ato eleitoral em que a comunidade internacional reconheceu a sua vitória sobre Laurent Gbagbo. São boas notícias, para aquele país, para a África e para as Nações Unidas.
Por uma vez, o Conselho de Segurança da ONU foi unânime na fixação de sanções a Gbagbo, reforçando e impondo a legitimidade do sufrágio e, muito em particular, evitando a "salomónica" partilha do poder, como havia acontecido no Quénia e no Zimbabué. Ou, o que seria ainda pior, a divisão do país, como aconteceu no Sudão - neste caso sob o inconsciente júbilo internacional, que, uma vez mais, deitou para o caixote do lixo da História a sábia regra de ouro da Carta da OUA (a qual, pelos vistos, é desprezada pela União Africana).
Esta crise deixou evidente que se vive em África um tempo de ostensiva tentativa de implantação de novos poderes regionais, que, sem surpresa, parece colocarem em segundo plano a preservação das regras democráticas, para garantirem a fixação da sua influência nacional, mesmo em zonas geopolíticas que, à partida, lhes seriam alheias. Isso aconteceu na Costa do Marfim, convém dizê-lo, devido à conjuntural auto-limitação de um vizinho poderoso (a Nigéria). E é importante que fique também dito: a teimosia de Gbagbo, com as milhares de vítimas e o custo económico e social que acarretou para o seu país, ficou muito a dever-se à esperança que colocava na sua proteção por parte de alguns poderosos amigos africanos, os quais, felizmente, perderam a parada.
O caso da Costa do Marfim suscita também, e uma vez mais, a eterna questão do que é, ou pode ser, a democracia em África. Com exceções tão escassas que já as tomamos como alheias ao próprio continente - como é o exemplo de Cabo Verde -, a grande maioria dos modelos políticos africanos funciona na lógica do "ou tudo ou nada": quem está no poder acapara o aparelho de Estado e os recursos do país, quem perde as eleições tem, as mais das vezes, como destino o exílio, a prisão ou ainda pior. Num modelo intermédio, alguns regimes "cooptam", para melhor neutralizar, personalidades da oposição, através da partilha da apropriação patrimonialista em que assentam o seu poder.
Uma conhecida escola de pensamento "do Norte", que se quer "compreensiva" com a necessidade de "evolução" desses modelos "do Sul", tidos como eternamente protodemocráticos pelas leis do destino, defende que se deve "respeitar" o gradualismo da evolução institucional desses Estados, que é necessário "compreender" algumas vantagens estratégicas, em termos de "estabilidade", que justifica a perpetuação dos seus dirigentes no poder, que há que ter "compreensão" pelas limitações que neles sofrem alguns direitos de cidadania - de acesso aos media, das mulheres, das confissões religiosas, etc. Às vezes sem se dar conta, quem assim pensa acaba por revelar um paternalismo racista e eurocêntrico, na assunção implícita de que a democracia é só para alguns eleitos, não querendo entender que só se aprende a nadar na água. Coincidem nesta escola "compreensiva", curiosamente, algumas correntes da esquerda "multiculturalista" e "porto-alegrista" e, claro!, Os usufrutuários liberais das vendas de armas, das negociatas e da corrupção. E mais não digo, para não estragar o fim-de-semana.
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