A França e o Paquistão estão separados por mais de 5.900 km e pelas barreiras imateriais entre leste e oeste. Contudo, estão unidos nos últimos dias por questões controvérsias que dizem respeito aos Direitos Humanos e a liberdade de culto.
É claro que falo da polêmica lei francesa que proíbe o uso de vestimentas que cubram toda a face, que foi feita tendo em vista as burcas e os niqabs utilizados pelas mulheres mulçumanas, em sua maioria imigrantes recém-chegadas ou membros de comunidades que encontram dificuldades de se assimilar a sociedade francesa. E falo também da restritiva Lei de Blasfêmia paquistanesa, que pretende impor observância e respeito religioso a força usando o peso secular do estado para isso.
Antes de qualquer coisa vou trazer aqui um trecho da Declaração Universal dos Direitos Humanos, mais precisamente seu artigo 18, onde se lê:
“Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observâcia, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.”
A questão do véu islâmico que cobre o rosto sempre exalta os ânimos e polariza o debate. Uma vez que um grupo marca sua posição afirmando que a vestimenta é opressiva, destinada a marcar a mulher como um objeto sexual e, portanto deve ser protegida dos olhares e é um instrumento para impor um status de inferioridade a mulher. E seu uso em uma sociedade democrática ocidental seria um desafio as leis e ao espaço conquistado pela mulher.
De outro lado estão os que afirmam que uso do véu além de observação de preceitos religiosos é uma opção da mulher mulçumana, um importante fator cultural e a expressão da livre aceitação da mulher das regras de sua comunidade e deveria ser permitido com base no relativismo cultural. Há outros argumentos mais essas são as linhas gerais dos grupos que ocupam os extremos do debate.
Os dois grupos possuem intelectuais e argumentos bem construídos e contam com apoio de mulheres islâmicas, que são os indivíduos diretamente afetados. Muito se diz que a lei seria uma perseguição ocidental aos islâmicos, baseada em uma pretensa noção de superioridade cultural dos primeiros.
Contudo, é interessante notar que países majoritariamente muçulmanos (claro que com governo mais seculares) como a Síria, Turquia e Jordânia têm restrições ao uso do véu, na Turquia é proibido o uso inclusive do que cobre só os cabelos em escolas, universidades, prédios públicos como o parlamento. Na Jordânia o governo usa os meios oficiais para exagerar e repetir sempre que possível os relatos de assaltantes que se valeram dos véus que cobrem a face para realizar seus crimes, num claro gesto para desestimular seu uso. E o governo sírio que agora enfrenta a ira da população e usa de meios brutais para se manter no poder baniu os niqab das universidades.
O caso francês traz uma inovação que é a proibição em espaços públicos como ruas, shopings, supermercados do uso de qualquer traje que não permita que se veja o rosto, claro que apesar desse tom geral o alvo certo dessas medidas são os grupos de imigrantes muçulmanos. A lei não prevê detenção apenas multa pecuniária e cursos de cidadania. Ainda assim apresenta um desafio prático, posto que a aplicação dessa lei exaspere as difíceis relações da polícia francesa com as comunidades de jovens filhos de imigrantes nos subúrbios de Paris, essas tensões costumam eclodir em episódios de violência que deixam feridos e carros queimados pela cidade luz.
Devo salientar que há na sociedade francesa um forte viés secularista que levou há alguns anos esse país a banir o uso de qualquer símbolo religioso ostensivo nas escolas, como “correntinhas” com crucifixos, Estrela de David, solidéus, véus de qualquer espécie. Então, se há um caráter de atrito com o islã nessa lei encontrou uma forte justificativa nesse viés, como encontrou naqueles que temem que a imigração consista numa islamização da Europa.
As Leis da Blasfêmia no Paquistão tem sua origem ainda no período colonial Britânico, essas leis em seu inicio visavam punir quem intencionalmente destruísse objetos de culto, locais de culto ou perturbasse os rituais religiosos, protegia também cemitérios e também criminalizava os insultos a crenças religiosas.
Com a independência e separação da Índia o governo militar que se instalou passou a ampliar a lei para separar legalmente os seguidores da fé Ahmadi que passaram a não ser considerados muçulmanos, perante a lei e foram proibidos de agir como se assim fossem. Essas leis previam a pena máxima de três anos, mais tarde se incluiu a proteção ao livro sagrado e também à medida que torna a ofensa contra o profeta Maomé uma ofensa capital.
Essa expansão do escopo e o agravamento das penas é uma demonstram das difíceis e imbricadas relações entre o exército (que é a instituição central da sociedade paquistanesa) e os grupos locais e líderes tribais adeptos de uma forma bastante literal de Islã e que em termos culturais é refratária a qualquer forma de modernização. Ao ceder nesse aspecto que conta com grande apelo popular os militares garantem seu lócus no centro da vida política com poucos desafios, embora nos últimos anos o assédio fundamentalista ao estado paquistanês tenha aumentado, usando a aliança com os EUA e a guerra no Afeganistão como justificativas.
O assunto das leis tem ocupado o noticiário desde que a paquistanesa católica Asia Bibi mãe de cinco filhos foi condenada a morte por ter blasfemado contra o profeta Maomé. Seguindo sua condenação o governador da província do Punjab, Salman Taseer que era contrário as leis foi assassinado por um de seus próprios seguranças, em janeiro desse ano. Mesmo destino do único ministro cristão do gabinete paquistanês Shahbaz Bhatti que liderava uma campanha para revisar a lei.
As duas leis mostram como tradições tão distantes, em países tão distintos sofrem para lidar com a diversidade de crenças. E mostram que em todo lugar do mundo e em todas as culturas existem aqueles que querem por meio de leis deter a mudança nos hábitos e mais as duas leis violam (de maneiras distintas) o espírito do artigo que coloquei acima que assegura que é direito humano ostentar em público seus símbolos religiosos e o direito a apostasia (que alguns chamam de Blasfêmia). Não ignoro que rostos cobertos em lugares públicos apresentam um desafio de segurança e policiamento, mas outras possibilidades além da proibição de certo tipo de vestimenta tão identificada com práticas religiosas poderia ter sido encontrada. Ou seja, as duas medidas dizem coibir abusos e facilitar a convivência respeitosa, mas são apenas mecanismo para a perseguição e assédio a grupos minoritários.
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