O leitor assíduo dessa página sabe que de tempos em tempos eu toco em assuntos teóricos e meta-teóricos. E dessa feita os convido novamente a refletir sobre nossa profissão, melhor sobre a nossa ciência.
Nesse sentido vi uma excelente reflexão no número de janeiro-fevereiro do Boletim Meridiano 47. Que toca numa questão que sempre trago aqui que é a tendência de fiar-se demais na versão oficial do Itamaraty. É claro que parte disso decorre da excelente qualidade acadêmica de vários diplomatas e do fato do Ministério possuir na Funag um excelente órgão de propagação da suas teses com publicações de qualidade e de baixo ou nenhum custo.
Não canso de recomendar que vocês sejam críticos da versão oficial, pois bem reitero a recomendação e agrego alguns trechos nesse sentido do artigo de Rogério de Souza Farias. Recomendo, também, que leiam a íntegra e o resto da revista.
O que pode ser problemático, nesses termos, é a forma pela qual o Itamaraty consegue não só determinada autonomia frente a uma classe política pouco disposta a chamar para si responsabilidades na área de política externa como a aprovação e a cooptação de acadêmicos diante de suas decisões. Com efeito, um dos maiores desafios acadêmicos hoje para o estudante da política externa brasileira é compreender a política de legitimação empreendida pelo ministério das relações exteriores. A curiosa ausência de uma visão crítica da política externa brasileira na academia pode decorrer, em parte, do ativismo do ministério em publicar e propagar sua própria visão histórica da PEB por intermédio de livros e palestras. Por outro, esse também é o resultado da boa qualidade dos trabalhos dos diplomatas que se aventuram na academia. De Araújo Castro a Eugênio Vargas Garcia – passando, é claro, por Gelson Fonseca Jr. – temos numerosos exemplos de servidores que conseguiram produzir artigos em revistas internacionais e nacionais relevantes e de grande impacto, formatando discurso convincente sobre os fundamentos da inserção internacional brasileira. Por incrível que possa aparecer, o maior perigo da disciplina não é ficar a reboque da discussão jornalística, como defende Wanderley Reis, mas associar-se demasiadamente à versão oficial propagada pelo Itamaraty.
Associado a essa discussão, também é oportuno questionar até que ponto a disciplina acadêmica de relações internacionais no Brasil contribui para a condução da PEB. Esse aspecto não deve ser minimizado. Se há um domínio de utilidade para a disciplina ele é certamente relacionado à forma como ela influencia a tomada de decisão da diplomacia. No caso americano, há grandes debates sobre como a evolução da disciplina de relações internacionais ocorre em ambiente de redução crescente de sua utilidade para decisores públicos. Com efeito, na década de 1950 a obra clássica de Morgenthau – Politics among nations – era o livro de cabeceira para a comunidade decisória de Washington; agora, a influência da academia é reduzida e resumida a nichos muito específicos, como controle de armamentos e não-proliferação nuclear, a despeito da elevação exponencial de doutores, publicações e utilização de tecnologias de comunicação de ponta (Carpenter e Drezner: 2010; Lepgold e Nincic: 2001, 2).
No Brasil, a situação é ainda pior. Na década de 1950, quando diplomatas como Miguel Osório lutavam para avançar uma agenda reformista na chancelaria, eles buscavam uma separação do processo de formulação da política externa da atividade de execução. A ideia deles era escolher um núcleo de diplomatas para atuar no planejamento da PEB, retirando-os das atividades do dia-a-dia para trabalhar em atividades mais especulativas que pudessem dar direcionamento estratégico ao órgão. Nesse esforço, havia a concepção de que o conhecimento produzido na academia, em especial na economia, poderia dar grandes contribuições ao processo decisório, tornando-o menos reativo (Batista: 1968). As idéias desses diplomatas nunca chegaram a ser implementadas de fato e o sonho de uma política externa “científica” que aproveitasse o conhecimento acadêmico disponível para sua formulação não perdurou.
DE SOUZA FARIAS, R.. O estudo das relações internacionais no Brasil: a crítica da relevância e a relevância da crítica. Boletim Meridiano 47, Brasília, Vol. 12, N. 123, fev. 2011. Disponível em: <http://seer.bce.unb.br/index.php/MED/article/view/1554/2512>. Acesso em: 13 Mar. 2011.
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