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Líbia: quantas incertezas

Há uma certa pressão para que se tenha uma opinião definitiva e portanto imutável sobre tudo o que ocorre no mundo. É preciso sempre ter algo taxativo e absoluto para dizer sobre algo. Contudo, nem sempre se tem elementos para construir uma opinião sobre algo, bom pelo menos uma opinião embasada, por que todos conhecemos pessoas que tem opinião firme sobre tudo sem nenhuma base cientifica ou mesmo lógica são os famosos achismos.

Em tempos de conflito armado como o a da Líbia essas opiniões se multiplicam e contam com as redes sociais e a blogosfera para serem difundidas numa verdadeira orgia de senso comum. É claro que qualquer pessoa tem direito a opinar sobre tudo, seria melhor que procurassem por elementos para suportar essa opinião.

Tenho dito dificuldades em avaliar a operação na Líbia e tenho escrito sobre isso e cheguei até lembrar eventos de intervenções humanitárias desastrosas e não-intervenções igualmente trágicas. Parece-me, no entanto algo errado se preocupar mais com o virtual estatuto de igualdade jurídica entre as nações do que com vidas humanas. Muito embora seja possível que a subversão da igualdade entre os estados permita a volta dos movimentos expansionistas (que ao longo da história são a norma) o que ceifaria muitas vidas.

Questões como essa descrita acima é que são o cerne da dificuldade em avaliar o que o ocorre no Norte da África.

As críticas a atual missão são variadas desde aquelas que não possuem o menor embasamento em pensamento estratégico e ações militares e chegam ao ponto de estranhar as missões que são feitas como se superioridade aérea não fosse alcançada destruindo capacidades de resposta no solo e mais ainda impedindo que esse assets sejam reparados e posto em funcionamento. É claro que esse tipo de ação deixará baixas nas guarnições desses assets e colaterais em civis que porventura morem ou estejam passando perto dos locais que são alvo.

Há muita especulação sobre a ampla expressão “todos os meios necessários”. Realmente é algo fora do comum na linguagem das Resoluções do Conselho de Segurança, embora haja uma proibição clara ao uso de tropas em solo. O que já reduz bastante o escopo da missão. A meu ver o termo tem uma razão de ser bem clara que é dotar as nações que participam da missão de flexibilidade no emprego de seus meios operacionais. É aqui é preciso fazer uma digressão para explicar algo para quem não conhece como são as Missões de Paz da ONU. Em geral o CS delimita os meios que podem ser utilizados, ou seja, os equipamentos que cada um dos participantes dessas forças podem ou não empregar, por exemplo, que tipo de blindado ou de arma leve (fuzil, lançadores de foguete, etc.) e também limitam as regras de engajamento (a grosso modo que situações que as forças podem ou não empregar a força). Esses limites por vezes não se adaptam a mudanças no teatro de operações, como tristemente nos ensina o caso de Ruanda.

A flexibilidade operacional fica clara ao se observar o emprego de diversos meios nos ataques contra a estrutura de defesa aérea da Líbia. Por exemplo, vetores balísticos como os mísseis de cruzeiro foram lançados de diversas plataformas como submarinos, fragatas, porta-aviões e foram combinados ao uso de diversos tipos de aeronaves. É bem provável que sem a provisão polêmica que permite todos os meios necessários não fosse legal o emprego desses assets.

O problema continua a ser quais são os objetivos a serem alcançados por essas movimentações militares. Ou seja, quando a missão está cumprida?

A Resolução fala em cessar fogo. Não é preciso ser um Sun Tzu para saber que um cessar fogo é precário por natureza e insistir apenas nisso pode acabar gerando um resultado de fragmentação territorial. É claro que apesar das negativas oficiais que as potências mundiais e os membros da Liga Árabe e até mesmo da União Africana preferem que o regime caia. O coronel Kadahfi é um líder que poucos pensam em defender, no momento só os que se solidarizam com oprimidos pelo capitalismo marciano defendem o coronel líbio, coincidentemente (ou não) um dos principais defensores também é um coronel.

Então objetivo seria depor Kadahfi, contudo só depor o ditador não garante segurança e integridade física para a população civil e como o regime líbio não construiu um estado que possa funcionar sem o patrimonialismo do ditador um vácuo de poder aparece no horizonte.

Começo a ver a situação da seguinte maneira Kadahfi é uma doença auto-imune que aflige a Líbia e o único tratamento disponível são sessões de quimioterapia, contudo como sabemos essas sessões são devastadoras e provocam conseqüências que retiram qualidade de vida do paciente durante o tratamento, mas se o tratamento for eficiente garantirá ao paciente uma vida melhor e potencialmente mais longa.

O problema é que ao contrário da ciência médica onde pesquisas quantitativas ajudam os médicos a estabelecerem que tratamento será mais efetivo não há muita exatidão em escolhas políticas ainda mais com uma miríade de interesses agindo e pressionando.

No momento creio que depor Kadahfi é um serviço prestado a toda humanidade, mas a acomodação de forças no caso de que isso ocorra será complexa e nada nos garante que a democracia esteja no horizonte de quem protestou e se rebelou. E quem tomou a decisão de atacar terá que viver com as conseqüências desse ato. Mas, caso nada fizessem teriam também que viver com as conseqüências desse ato. É físico e elegante cada ação produz uma reação igual em sentido inverso.

E no fim das contas continuo sem ter uma opinião se foi o mais correto iniciar essa campanha na Líbia, embora deva admitir que prefiro errar na ação do que por omissão. Ou seja, se eu tivesse que decidir é provável que teria ido no mesmo caminho do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

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