Pular para o conteúdo principal

Ler, Refletir e Pensar: O ocidente e a “rua árabe”, por Francisco Seixas da Costa

Aos sábados costumo textos que não são de minha lavra, mas que julgo relevantes seja por seu valor analítico, seja por valor cultural. Essa semana novamente trago um texto escrito pelo embaixador português em França, Francisco Seixas da Costa, que além de inúmeros livros sobre assuntos correlatos as relações internacionais, mantém um interessante blog – Duas ou três coisas.

O texto é uma breve reflexão sobre os acontecimentos que sacodem o mundo islâmico. A postagem é transcrita tal qual o original, incluso a imagem. Original aqui.

O ocidente e a “rua árabe”


É difícil e arriscado procurar reduzir a modelos simplificados de explicação realidades que são muito complexas. O vento de instabilidade que afeta vários Estados árabes, para além das sementes de mútuo contágio, traduz realidades e relações de força muito diferentes. Mas não deixa de ter pontos comuns.

Com graduações e formatos institucionais diversos, todos esses regimes em crise são marcados por fortes sistemas de autoridade, às vezes sob a forma de uma figura predominante, noutros casos com uma preeminência das forças armadas, noutros ainda com uma combinação de ambos os fatores. Ora a História ensinou-nos - ensinou-nos? - que todos os formatos institucionais que não sejam regularmente legitimados de forma democrática têm, a prazo, uma necessária fragilidade. Essa fragilidade agrava-se se o sistema não conseguir proporcionar um desenvolvimento económico, com eficaz distribuição da riqueza e, como se viu claramente no caso tunisino, se não for capaz de corresponder aos anseios de uma classe média emergente, aculturada aos padrões ocidentais. De forma clara, o fim das barreiras de informação tem também um crescente e importante papel, até porque é na juventude que a ela tem acesso, muitas vezes sem emprego e sem perspetivas, que assenta muita da potencial "mão-de-obra" manifestante.

No caso do mundo árabe, estes fenómenos cruzam-se ainda com a presença do fator religioso, que tem uma relevância diferenciada em cada caso nacional mas que, onde e quando emerge com força, por via de proselitismo de influência ou mesmo por via democrática, coloca desafios de outra natureza. É que o Islão tem uma mundividência diferente de todas as outras grandes religiões, influenciando todas as áreas da vida quotidiana, a que a política não escapa. E, nas suas versões mais radicais, é incompatível com os modelos democráticos tradicionais.

Se a vida internacional não fosse uma coisa muito séria, quase poderíamos dizer que se torna hoje irónico ver o mundo ocidental a fazer figura de "barata tonta" face ao terramoto que abala o mundo islâmico: tanto se sente tentado a prolongar (sem o assumir abertamente) uma "realpolitik" que acaba por ser cúmplice de certas situações que (apenas retrospetivamente) acha intoleráveis, como aparece excitado (mas, lá no fundo, receoso com o que dai pode resultar, porque não dispõe de influência para condicionar o rumo das coisas) perante o aflorar desorganizado da vontade popular em certos Estados. 

Por uma vez, sejamos francos: o mundo desenvolvido euro-americano está - no mundo árabe, na África negra ou em certas zonas asiáticas - simplesmente a colher, não aquilo que plantou, mas o que deixou crescer, porque lhe dava jeito. E, claramente, não sabe hoje o que fazer.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Colômbia – Venezuela: Uma crise previsível

A mais nova crise política da América do Sul está em curso Hugo Chávez o presidente da República Bolivariana da Venezuela determinou o rompimento das relações diplomáticas entre sua nação e a vizinha Colômbia. O fez em discurso transmitido ao vivo pela rede Tele Sur. Ao lado do treinador e ex-jogador argentino Diego Maradona, que ficou ali parado servindo de decoração enquanto Chávez dava a grave noticia uma cena com toques de realismo fantástico, sem dúvidas. Essa decisão estar a ser ensaiada há tempos, por sinal em maio de 2008 seguindo o ataque colombiano ao acampamento das FARC no Equador. Por sinal a atual crise está intimamente ligada aquela uma vez que é um desdobramento natural das acusações de ligação entre a Venezuela e os narco-gueriilheiros das FARC. Nessa quarta-feira o presidente da Colômbia (e de certa maneira o arquiinimigo do chavismo na América do Sul) Álvaro Uribe, por meio de seus representantes na reunião da OEA afirmou que as guerrilhas FARC e ELN estão ativas...

Fim da História ou vinte anos de crise? Angústias analíticas em um mundo pandêmico

O exercício da pesquisa acadêmica me ensinou que fazer ciência é conversar com a literatura, e que dessa conversa pode resultar tanto o avanço incremental no entendimento de um aspecto negligenciado pela teoria quanto o abandono de uma trilha teórica quando a realidade não dá suporte empírico as conjecturas, ainda que tenham lógica interna consistente. Sobretudo, a pesquisa é ler, não há alternativas, seja para entender o conceito histórico, ou para determinar as variáveis do seu experimento, pesquisar é ler, é interagir com o que foi lido, é como eu já disse: conversar com a literatura. Hoje, proponho um diálogo, ou pelo menos um início de conversa, que para muitos pode ser inusitado. Edward Carr foi pesquisador e acadêmico no começo do século XX, seu livro Vinte Anos de Crise nos mostra uma leitura muito refinada da realidade internacional que culminou na Segunda Guerra Mundial, editado pela primeira vez, em 1939. É uma mostra que é possível sim fazer boas leituras da história e da...

Ler, Refletir e Pensar: The Arab Risings, Israel and Hamas

Tenho nas últimas semanas reproduzido aqui artigos do STRATFOR (sempre com autorização), em sua versão original em inglês, ainda que isso possa excluir alguns leitores, infelizmente, também é fato mais que esperado que qualquer um que se dedique com mais afinco aos temas internacionais, ou coisas internacionais, seja capaz de mínimo ler em Inglês. Mais uma vez o texto é uma análise estratégica e mais uma vez o foco são as questões do Oriente Médio. Muito interessante a observação das atuações da Turquia, Arábia Saudita, Europa e EUA. Mas, mostra bem também o tanto que o interesse de quem está com as botas no chão é o que verdadeiramente motiva as ações seja de Israel, seja do Hamas. The Arab Risings, Israel and Hamas By George Friedman There was one striking thing missing from the events in the Middle East in past months : Israel. While certainly mentioned and condemned, none of the demonstrations centered on the issue of Israel. Israel was a side issue for the demonstrators, with ...