Continuando a série retrospectiva “12 meses em 12 textos”. Junho foi o mês em que a primeira Copa do Mundo FIFA foi disputada em solo africano, portanto foi o mês marcado pelo monótono e francamente irritante som das vuvuzelas. Em termos de política externa e internacional o mês pode ser marcado por uma reportagem de capa dedicada ao Brasil pelo conceituado Financial Times. Mas, como a copa do mundo foi a tônica selecionei um texto que toca no tema e conjuga com a análise internacional.
O texto foi originalmente publicado em 24 de junho, aqui.
Boateng versus Boateng: Uma alegoria do mundo atual
A Copa do Mundo FIFA é sem dúvidas um evento esportivo envolvente, no caso de nós que vivemos aqui no Brasil, é onipresente. Só se fala nisso, mesmo os que nada entendem de futebol e que não acompanham esse esporte. Tornam-se fanáticos, assistem a todos os jogos, comentam, palpitam, cornetam (ato de falar mal do time, gíria comum entre os torcedores). Aqueles que não têm arroubos nenhum de patriotismo se vestem de verde e amarelo, defraudam suas bandeiras e catam a plenos pulmões o hino nacional.
Sim são cenas corriqueiras aqui nessas terras que gostamos de chamar de país do futebol. Essa competição envolve menos países que os Jogos Olímpicos (apenas 32) e apenas uma modalidade, mas conseguem movimentar de tal maneira os corações dos povos que o desfile da fauna humana nas arquibancadas dos estádios supera qualquer outra competição.
Não são poucas as análises sociológicas do futebol, e até Kissinger faz alusão ao esporte bretão comparando o estilo de jogo ao estilo de política externa. Isso tudo que coloquei até aqui é ponto pacífico.
No memento em que tracejo essas linhas estão em campo a espera do inicio da partida as equipes da Alemanha e de Gana. O esporte é antes de tudo competição entre atletas, se me permitem a tautologia, mas também é terreno fértil para analogias e metáforas com a vida política e com as relações internacionais. Claro, que são metáforas imperfeitas, contudo tem suas situações interessantes. No campo da simbologia óbvia a partida por conta do acaso dos sorteios e das cores em comum dos uniformes vemos a Alemanha a jogar toda de negro e Gana a jogar toda de branco. Um fruto do acaso que serve como gancho para nos mostrar como imagens genéricas sobre cor da pele e país são anacrônicas.
É claro que o que mais chama a atenção nessa partida é a busca pela classificação para a próxima fase, o interesse por ela deriva de sua importância esportiva, mas no campo das observações “meio relações internacionais, meio conversa de bar” temos o interessante confronto Boateng versus Boateng. [Jérôme Boateng (Alemanha) e Kevin-Prince Boateng (Gana)] Dois meio-irmãos, que compartilham o pai e o gosto e capacidade de jogar futebol em alto nível profissional, mas não compartilham a nacionalidade.
No plano familiar os irmãos estão (estavam?) sem se falar desde que o Kevin-Prince em uma entrada brusca na final da “FA Cup”, retirou a estrela alemã Michael Ballack da Copa do Mundo. [Nesse link um vídeo da falta, por que creio que entre os meus leitores deve haver alguns que não sabem do que estou a falar.]
Esse enfrentamento por países distintos é um retrato impressionante sobre a globalização, migração e alocação de recursos produtivos, afinal o mercado do futebol é quase um mercado ao melhor estilo do que preconizam Adam Smith e David Ricardo, se poderia até entrar em uma seara de análise de vantagens comparativas versus vantagens competitivas na produção de novos jogadores e os efeitos da liberalização nos talentos nacionais, mas isso é um trabalho extenso que exige dados empíricos e pesquisa que não posso desenvolver no momento. Fica a sugestão a quem esteja a procurar um bom campo de pesquisa.
É interessante notar que mesmo com a existência infame e desgraçada de racistas nas torcidas de futebol, por todo o mundo, a maior parte dos torcedores parece não diferenciar entre imigrantes e natos quando se trata de talento. O grito de gol parece ignorar questões de naturalidade, afinal diante de um gol de Cacau, não há alemão que se lamente dele ser alemão natural de São Caetano do Sul, em São Paulo. (enquanto escrevo esse parágrafo o Boateng ganês teve seu chute bloqueado pelo Boateng alemão).
São momentos assim que fazem meu pessimismo quanto a humanidade arrefecer um pouco e perceber que mesmo em marcha lenta (comparável ao deslocamento das placas continentais em subducção) ela se desenvolve e avança em direção a um mundo menos sectário (quero crer).
Numa esfera menos utópica essa profusão de nacionalizados e filhos de migrantes atuando com vigor por suas novas pátrias mostra que é possível resolver a complicada questão da assimilação de imigrantes quem sabe o simbolismo do futebol ajude a criar condições sociais para que esse processo ocorra, de maneira mais fácil, agora sem ilusões e arroubos de que tudo se resolverá por causa do esporte, fosse assim a situação dos imigrantes na França seria completamente nula, por conta de Zidane.
Quem venceu o duelo de irmãos? Quem jogou melhor? Essas são questões para os analistas de futebol.
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[Só para constar]: A vitória alemã, combinada a vitória da Austrália na outra partida do grupo classificou Gana e Alemanha para as oitavas-de-final da Copa do Mundo, por enquanto as estrelas negras são a única esquadra do continente africano a se manter na disputa na África do Sul. Com potencial de se tornar a favorita dos locais.
[Ainda sobre a Copa]: Li no twitter: “A Copa do Mundo está como a Segunda Guerra Mundial. A França se entregou. Os EUA chegaram tarde e a Inglaterra terá que enfrentar a Alemanha”.
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