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Um ‘conto’ sobre a tolice exagerada: O Pastor, o Alcorão, o Brasileiro e o Egito

Algumas questões são maiores que as análises sobre política externa, política internacional ou mesmo as questões sobre as teorias das relações internacionais. Algumas questões são discussões profundas sobre valores, cultura, ética e moralidade. Um exemplo é claro o já infame caso do Pastor Terry Jones e seu “International Burn a Koran Day”. E o caso que teve menos repercussão do brasileiro expulso do Egito por proselitismo religioso.

Por serem discussões profundas são convidativas a todos os que têm predileção por temas intelectuais, cada um dos que tomam voz nesse debate público partem de pressupostos distintos, constroem teses e hipóteses e as tornam públicas. Partindo muitas vezes de pontos distintos o que junto a assimetria de informação entre os debatedores causa ruídos que por vezes podem encobrir a conversa. Todos nós já vimos discussões assim, principalmente em fóruns públicos como na internet, onde todos se sentem motivados a opinar e por muitas vezes o fazem sem nenhum refinamento do pensamento e essas discussões eclodem em falácias lógicas e acusações.

Esse comportamento de rejeição ao distinto parece ser uma característica humana que talvez seja o gérmen de todas as formas de fanatismo e totalitarismo que ao longo de nossa existência têm sido comuns. Não pretendo, contudo, escrever um ensaio exploratório da alma humana – francamente me falta experiência de vida para um exercício como este – pretendo sim elucubrar sobre o exagero. Sim, a essa altura todos já se deram conta que a importância atribuída ao auto-proclamado pastor do interior da Florida foi exagerada e que muito provavelmente esse senhor desejava repercussão midiática a partir de sua proposta atabalhoada.

Mas, o exagero não foi só da mídia, o exagero se espalhou nutrido pela imprensa é verdade, mas só se espalhou por que encontrou no terreno o fertilizante do medo e da paranóia. Isto é, desde que se começou a veicular essa noticia o medo da represália dos extremistas motivou toda sorte de intervenções oficiais. A meu ver essa reação temerosa dos terroristas foi uma propaganda mais eficaz para esses grupos do que o ato tresloucado do pastor.

Afinal, o medo da reação dos extremistas instou intervenções de altas autoridades dos EUA e de líderes religiosos como Sua Santidade Bento XVI. Não vejo como deletério o esforço dessas autoridades mencionadas de tentar se desvencilhar do ato as instituições que representam. Todo esforço na direção de um entendimento entre povos e culturas é válido e atende aos diversos interesses nacionais. Ainda mais esse que visava demonstrar o óbvio que o religioso usava de sua liberdade de expressão (um valor que ajudou a moldar o modo de vida ocidental), mas não falava em nome dos cristãos e/ou dos norte-americanos. Contudo, a ênfase dada à possibilidade de reação extremista desvirtuou a questão e pode ser um incentivo ao continuado uso da violência. Como por sinal foi feito durante manifestações de desagravo ao intento do pastor do interior do estado da Florida.

Numa nota paralela que mostra como funciona a reverberação midiática um cidadão brasileiro foi preso e expulso do Egito por fazer proselitismo religioso, isto é, por pregar a religião cristã. Um ato oficial de intolerância religiosa que não inspirou protestos, nem mesmo notas mais agudas por parte da diplomacia brasileira, nem na imprensa houve um movimento de repúdio. Vale lembrar que isso é um ato da violação dos direito humanos (de primeira geração).

O Egito por sinal é um país fascinante que tem uma política de restrição a outras religiões que é testemunho ao fato de ser o país de origem da “Irmandade Muçulmana” ao mesmo tempo em que é um país como uma política externa complexa com uma aliança tensa com Israel.

Ora o ato do pastor foi mais ostensivamente divulgado e termo “islamofobia” logo veio a tona, mas nada no mesmo sentido foi visto no caso do brasileiro no Egito, quando em essência os dois atos (com o agravante do peso do estado por trás do segundo) derivam do mesmo pensamento hostil ao que é distinto. O tão propalado medo da diferença, afinal em comunidades que prezam pela uniformidade a voz distinta dificilmente será bem aceita. E isso não é exclusividade de esferas religiosas. Tente por exemplo apresentar opiniões contrárias a da maioria em uma reunião de trabalho, na sala de aula, numa reunião partidária e parte do grupo agirá no interesse de preservação do status quo do grupo. Preservar aquela gostosa sensação do consenso e de fazer parte do grupo.

A diferença está na ferocidade que é aceita na resposta ao distinto, ou seja, numa reunião de trabalho é provável que haja um debate animado, mas não virulento ou agressivo (embora cheio de frustrações). Assim grande parte do problema está em como é visto o uso da violência. E ai o exemplo do pastor foi terrível por que mostrou para muitos radicais que sua estratégia pode estar a ser vencedora.

Ao olhar o caso todo vemos que é tudo uma grande tolice: queimar o Alcorão, achar que proibir a pregação de outras religiões evitará o surgimento de apostadas e principalmente a extrema publicidade que a imprensa deu ao ato de um homem perturbado que não é representativo da maioria dos cristãos. Embora seja preciso deixar claro que há entre muitos grupos cristãos um sentimento de que se é tolerante demais com o Islã que não demonstra a mesma tolerância. Mas, generalizar sem dados que permitam isso também é uma tolice extrema.

E no final o mundo ficou um pouco mais desconfiado do diferente e perigoso. E um tanto menos livre. Exagero?

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