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Ler, Refletir e Pensar

Nesse sábado afasto-me das poesias e obras literárias que tanto tenho apreço para destacar um trecho de uma importante obra da historiografia brasileira, é certo que ao ler essa obra com olhos modernos nos escandaliza o uso de certas palavras que o politicamente correto e o bom senso (dos dias atuais) se encarregaram de retirar do vocabulário aceitável.

A obra é o clássico “Casa Grande & Senzala” do conhecidíssimo Gilberto Freire, livro que é a um tempo só combatido e incompreendido. Por muitos tido como um manifesto em prol do estilo português de colonialismo ou como obra que celebra e exalta o modo como se deu a miscigenação brasileira. Contudo, a leitura do livro nos mostra como o sistema econômico da monocultura sustentado por trabalho escravo é causa de deformações morais e hábitos que são muito além de preconceituosos uma vez que são sádicos. Freire ao se valer de fontes histórica e uma análise perspicaz traça um retrato da alma da Casa Grande, principal a dos engenhos litorâneos, do período colonial e imperial. E sem cerimônia desnuda a camada de polidez aparente para mostrar como a escravidão perverteu física e moralmente os senhores e os escravos, sem imputar os segundos, como muitos fizeram em períodos anteriores.

É particularmente espantoso os relatos de época sobre a precocidade do casamento entre as “meninas-moças” que despertavam o desejo sexual dos homens em comparação a matronas sem-vida de 18 anos!!!

O trecho que destaco, contudo, versa sobre os efeitos morais da violência generalizada no trato com escravos que resultava em meninos sádicos e precocemente sexualmente ativos, principalmente se valendo do estupro (uma vez que as negras não tinham opção) como algo normal e até estimulado, por medo de que o menino mantivesse hábitos “maricas ou donzelões”. Sem mais delongas transcrevo:

Na “Idéa Geral de Pernambuco em 1817” fala-nos um cronista anônimo de “grande lubricidade” dos negros de engenho; mas adverte-nos que estimulada “pelos senhores ávidos de augmentar seus rebanhos”.* Não seria extravagância nenhuma concluir, desde e de outros depoimentos, que os pais, dominados pelo interesse econômico de senhores de escravo, viram sempre com olhos indulgentes e até simpáticos a antecipação dos filhos nas funções genésicas: facilitavam-lhes mesmo a precocidade de garanhões. Referem as tradições rurais que até as mãos mais desembaraçadas empurravam para os braços dos filhos já querendo ficar rapazes e ainda donzelos, negrinhas ou mulatinhas capazes de despertá-los da aparente frieza ou indiferença sexual.

Nenhuma casa-grande do tempo da escravidão quis para si a glória de conservar filhos maricas ou donzelões. O folclore da nossa antiga zona de engenhos de cana e fazendas de café quando se refere a rapaz donzelo é sempre em tom de debique: para levar o maricas ao ridículo. O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas. Raparigueiro, como ainda hoje se diz. Femeeiro. Deflorador de mocinhas. E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e o capital paternos.

Se este foi sempre o ponto de vista da casa-grande, como responsabilizar-se a negra da senzala pela depravação precoce do menino nos tempos patriarcais? [...]

* Nota de rodapé número 216 no texto original. Lê-se o seguinte: “Idéa Geral de Pernambuco em 1817”. Rev. Inst. Arq. His. Geog. de Pernambuco, 29. Veja-se também Vilhena, Cartas, I. p. 138, sobre relações de brancos de boas famílias com negros e mulatos na Bahia.
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FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal. Ed. Global. 50ª Ed. Rev. e Amp. São Paulo, 2005.



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