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Ler, Refletir e Pensar

Como de hábito aos sábados seleciono um trecho de algum texto que considero enriquecedor, pode ser um trecho de algum livro científico, alguma poesia ou trecho de livro, em geral são trechos curtos. Contudo, desta feita o trecho é um pouco longo ontem a noite depois de escrever sobre as novas escaramuças sul-americanas decidi relaxar relendo um bom livro, um erro que repito sempre.

Erro na medida em que acabo por devorar o livro e durmo tarde. O livro que busquei em minha modesta, mas querida biblioteca foi o clássico do realismo fantástico (acho que por que me lembrei do gênero na postagem abaixo) Cem anos de solidão de Gabriel García Márquez, um autor que adoro ao mesmo tempo em que detesto suas atitudes políticas. O trecho que transcrevo vai fiel a tradução que li (cujos dados bibliográficos estão ao fim do texto) e é a meu ver “the best book end ever” (o melhor final de livro, de todos), a frase é uma paráfrase do bordão comum da personagem Comic Book Guy, o famoso Cara dos Quadrinhos da série de animação “Os Simpsons”. [Sim eu misturei relações internacionais, García Márquez e animação]. Espero que gostem.

Em nenhum ato da sua vida Aureliano tinha sido mais lúcido do que quando esqueceu os seus mortos e a dor dos seus mortos e tornou a pregar as portas e as janelas com as cruzes de Fernanda, para não se deixar perturbar por nenhuma tentação do mundo, porque agora sabia que nos pergaminhos de Melquíades estava escrito o seu destino. Encontrou-os intactos, entre as plantas pré-históricas e os charcos fumegantes e os insetos luminosos que tinham desterrado do quarto qualquer vestígio da passagem dos homens pela terra, e não teve serenidade de levá-los para a luz, mas ali mesmo, de pé sem a menor dificuldade, como se estivessem escritos em castelhano sob o brilho deslumbrante do meio-dia, começou a decifrá-los em voz alta. Era a história da família, escrita por Melquíades inclusive nos detalhes mais triviais, com cem anos de antecipação. Redigira-a em sânscrito, que era sua língua materna, e cifrara os versos pares com o código privado do imperador Augusto e os impares com os códigos militares lacedemônios. A proteção final que Aureliano começava a vislumbrar quando se deixou confundir pelo amor de Amaranta Úrsula, radicava em Melquíades ter ordenado os fatos no tempo convencional dos homens, mas concentrando tudo em um século de episódios cotidianos, de modo que todos coexistiram num mesmo instante. Fascinado pela descoberta, Aureliano leu em voz alta, sem saltos, as encíclicas cantadas que o próprio Mélquíades fizera Arcádio escutar e que, na realidade, eram as predições da sua execução, e encontrou anunciado o nascimento da mulher mais bela do mundo que estava subindo ao céu de corpo e alma, e conheceu a origem de dois gêmeos póstumos que renunciavam a decifrar os pergaminhos, não só por incapacidade e inconstância, mas por que suas tentativas eram prematuras. Nesse ponto, impaciente por conhecer a sua própria origem, Aureliano deu um salto. Então começou o vento, fraco, incipiente, cheio de vozes do passado, de murmúrios de gerânios antigos, de suspiros de desenganos anteriores às nostalgias mais persistentes. Não o percebeu porque naquele momento estava descobrindo os primeiros indícios do seu ser, num avô concupiscente que deixava arrastar pela frivolidade através de um ermo alucinado, em busca de uma mulher formosa a quem não faria feliz. Aureliano o reconheceu, perseguiu os caminhos ocultos da sua descendência e encontrou o instante da sua própria concepção entre os escorpiões e as borboletas amarelas de um banheiro crepuscular, onde um operário saciava a sua luxúria com uma mulher que se entregava a ele por rebeldia. Estava tão absorto que também não sentiu a segunda arremetida do vento, cuja potência ciclônica arrancou das dobradiças as portas e as janelas, esfarelou o teto da galeria oriental e desprendeu os cimentos. Só então descobriu que Amaranta Úrsula não era sua irmã, mas sua tia, e que Francis Drake tinha assaltado o Rio-hancha só para que eles pudessem se perseguir pelos labirintos mais intricados do sangue, até engendrar o animal mitológico que haveria de por fim à estirpe. Macondo já era um pavoroso rodamoinho de poeira e escombros, centrifugado pela cólera do furacão bíblico, quando Aureliano pulou onze páginas para não perder tempo com fatos conhecidos demais e começou a decifrar o instante que estava vivendo, decifrando-o à medida que vivia, profetizando-se a si mesmo no ato de decifrar a última página dos pergaminhos, como se estivesse vendo a si mesmo num espelho falado. Então deu outro salto para se antecipar às predições e averiguar a data e as circunstâncias de sua morte. Entretanto, antes de chegar ao verso final já tinha compreendido que não sairia nunca daquele quarto, pois estava previsto que a cidade dos espelhos (ou das miragens) seria arrasada pelo vento e desterrada da memória dos homens no instante em que Aureliano Babilônia acabasse de decifrar os pergaminhos e que tudo o que estava escrito neles era irrepetível desde sempre e por todo o sempre, porque as estipes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra.
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MÁRQUEZ, Gabriel García [Tradução de Eliane Zagury]. Cem anos de solidão. 58ª Ed. Record, Rio de Janeiro, 2005. 

Comentários

Thiago Barradas disse…
Muito interessante mesmo :)

Vale a pena parar e pensar.
Anônimo disse…
Eu não consegui ler esse livro, acredita?

Bela referência, e bela lembrança!
Anônimo disse…
Esse é um dos meus livros prediletos e sem duvida um dos melhores finais de livro ,que bom encontrar isso aqui *-*

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