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Projeto Ficha Limpa

Sei que nossa seara se limita as coisas internacionais, contudo, esse projeto de lei de origem popular é algo indubitavelmente digno de debate. A iniciativa, que me parece, nasceu da natural revolta das pessoas honestas com o estado de coisas na administração pública brasileira, principalmente no que tange aos quesitos e pré-requisitos morais dos que postulam ocupar cargos eletivos.

Tornou-se rotineiro que nos escândalos políticos seja prevaricação, seja corrupção, seja tráfico de influência, enfim todo tipo de escândalo até os sexuais (com pensões alimentícias de filhos fora do casamento sendo pagas por empreiteiras), tenham como protagonistas as mesmas figuras. Homens públicos, indignos que de algum modo continuam a ser eleitos e re-eleitos, são cotados para cargos altos nos governos e colocam seus afilhados políticos (quando não parentes ou seus cônjuges até mesmo namorados) em cargos em ministérios, estatais, autarquias, fundações, enfim, órgãos e empresas públicas.

Essa situação de eterna impunidade, já que os processos contra essas “autoridades” (indignos desse nome) constantemente trocam de competência na esfera jurídica, o que culmina em atrasos na distribuição desses processos nos sobrecarregados tribunais superiores, isso quando não é preciso licença dos pares desses políticos para autorizar esses processos em julgamentos políticos, que por vezes existem apenas para aquecer o forno que prepara as pizzas (para usar a metáfora mais comum para esse tipo de situação).

Nesse sentido é lógico que se tente criar barreiras para que indivíduos que não preenchem os requisitos morais não possam se candidatar, essa varredura é feita atualmente, mas a sentença, para resultar na negação do registro do candidato tem que ter transitado em julgado. A proposta acolhida com entusiasmo pela população muda essa regra impedindo que qualquer um que tenha sido condenado (mesmo que a sentença ainda não tenha transitado em julgado) não possa sequer se candidatar.

Logo, que esse projeto começou a ganhar corpo se tornando uma realidade política, surgiu a hipótese de que esse funil estreito poderia ser usado para prejudicar candidatos, principalmente em pequenas comarcas, onde eventualmente o juiz, tenha agenda política própria e assim emitindo sentenças em primeira instância somente para expurgar adversários do embate eleitoral.

Sem dúvida essa hipótese tem força, já que não é difícil perceber que há togados que parecem ser mais partidarizados do que deveriam e não só nas pequenas e distantes comarcas, mas em todas as cidades. Dessa forma, o projeto passou por alterações no congresso, que fazem parte do jogo democrático que busca acomodar as diversas correntes de opinião. É óbvio que os políticos devem ouvir a voz do povo nas ruas, mas com discernimento, por que se desta feita o clamor popular era por uma causa justa e racional, não faltam na história momentos em que o povo pressionou por coisas que mais tarde se provaram péssimas.

Depois da apressada e pressionada deliberação no Congresso (que se não for assim protela qualquer mudança nas regras políticas por décadas) o projeto foi aprovado, com mudanças de linguagem que estão dando o que discutir em juristas e jurisconsultos (com o perdão da redundância) e com a mudança de conteúdo que visa minimizar os impactos de um eventual ativismo político de juízes, ao deixar claro que o impedimento de candidatura se dá quando da condenação por tribunal colegiado, ou seja, por sentença proferida por mais de um Juiz de Direito.

Não sou audacioso ao ponto de discutir essa nova lei do ponto de vista do Direito não consultei minhas advogadas (amigas desse blog que me ajudam em assuntos jurídicos, Dra. Débora C. C. Matos, Dra. Daniela Rodrigues (minha querida prima), Dra. Josicler Arana (grande e assídua leitora desse blog), Dra. Ana Paula Dourado e a bacharela em direito e em relações internacionais Carolina Valente), portanto me limitarei a deliberar do ponto de vista de um cientista social, de um cidadão.

O projeto é sem dúvidas um bom exemplo de envolvimento das pessoas, que mostra que há alguma consciência política nesse país, que não está condicionada a nenhum partido ou linha ideológica. E mostra que a pressão das ruas não é dissipada por um suposto isolamento da classe política, em Brasília.

Contudo, parte de mim, não é entusiasta da proposta por que esse projeto nem deveria existir o lógico seria que pessoas suspeitas, com má-fama, e reputação nada ilibada não deveriam receber dos partidos a oportunidade de se candidatar e mesmo se conseguissem não deveriam receber votos.

De certo modo esse projeto tem um viés paternalista que visa proteger o povo de si mesmo, tutelando os cidadãos como se incapazes fossem, ainda que de fato votem errado, a meu ver, e isso é importante, por que dizer que o povo não sabe votar, pode ser uma afirmação da verdade, ou apenas inconformismo por que seu partido e/ou candidato foi derrotado na eleição.

Talvez fosse o caso de exigir, de cobrar alterações nas legislações que tornem mais céleres os julgamentos, dos processos que sejam oriundos dos escândalos, diminuindo assim a impunidade, mas isso demanda tempo, demanda homens públicos de verdade, o que falta no medíocre cenário político brasileiro. Então, o ficha limpa acaba por ser a vitória possível, a vitória daqueles que querem um ambiente político, mais limpo, em que os debates sejam de idéias e não de quem rouba mais. Uma vitória dos que abominam o “rouba, mas faz”. Embora, seja uma vitória amarga, por que a necessidade de que exista um projeto desses, que seja necessária essa lei, mostra a falência ética do sistema político, que quer queiramos, quer não, representa a sociedade brasileira.

Se o projeto ficha limpa será um caminho para transformar o Brasil em um país mais sério, ou se será apenas mais uma lei contornada pela exploração das fraquezas do sistema jurídico, por parte daqueles que o desenham. Isso resta ver? Mesmo, por que contestações judiciais existirão.

O ideal mesmo é que não se votasse em que tem reputação manchada, naturalmente, por terem a reputação que têm e que não fosse preciso ter uma lei específica para isso. Como eu disse é uma vitória agridoce, uma vitória morna. O que me anima, o que eu acho de muito positivo desse projeto, foi o engajamento sereno da população, que usou a pressão não só em passeatas, mas no corpo a corpo na mídia e Congresso, fazendo o bom lobby (aquele da persuasão e do convencimento e não o que se tem como lobby no Brasil, que é em linguagem popular corrupção). 

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