Essa postagem bem que poderia se chamar “como eu não vi isso antes?”
Escrever diariamente sobre relações internacionais é um exercício fabuloso, contudo, por vezes o açodamento em encontrar temas para escrever retira o tempo necessário para refletir, para analisar as coisas com a profundidade que eu gostaria de ter. Lamentavelmente ou naturalmente todos nós somos expostos em algum momento a nossa humanidade, isto é, nossas falhas. E nesse sentido, eu que sou sempre muito atento a forma, engoli uma tremenda barriga (jargão jornalístico para notícia publicada que se revela falsa). Ainda que desde o momento que tive noticia do sucesso da negociação em Teerã tenha escrito que era preciso ter em mãos maiores detalhes.
E o detalhe que me escapou, alias detalhe não, por que é algo grande que é o mecanismo que foi escolhido para dar formalização ao entendimento alcançado pelos Ministros de Relações Exteriores de Brasil, Irã e Turquia, que foi o formato de DECLARAÇÃO, ou seja, formalmente não foi um acordo. E acreditem isso faz muita diferença. Uma coisa já havia chamado minha atenção que era assinatura por parte dos ministros e não dos chefes de estado presentes, o que já denotava que havia alguma manobra jurídica para minorar obstáculos legislativos. Ou seja, a natureza do engenho diplomático era e é ainda bastante controverso.
Estava pesquisando e esperando os dados e detalhes para entender por que os chefes de estado, presentes não se arrogaram essa simbólica vitória, afinal, qual político que resiste a assinatura de um documento “histórico” e com possibilidade de ser um documento que destravaria negociações sensíveis em uma região complexa.
Nesse momento é que fica evidenciado algo que sempre digo, que por mais que eu seja um profissional, com já alguns anos de experiência, faltam-me décadas (isso mesmo décadas) de estudo (não que isso seja desabonador da qualidade de meu trabalho). E por que eu escrevo isso, por que ao ler hoje o Blog do experiente diplomata de carreira Paulo Roberto de Almeida – Diplomatizzando – me deparei com uma postagem que trás elementos indispensáveis para compreender bem o que se passa nessa situação. O título da postagem é Política Nuclear do Iran (2): uma simples declaração tripartite, não um acordo.
E percebi que minha inquietação quanto à forma anunciada do acordo era correta, mas me faltou o engenho de observar a questão por esse prisma, talvez por ter me ocupado das conseqüências e dos porquês, me esqueci do importante como. A postagem foi inspirada pelo comentário do leitor habitual daquele blog Paulo Araújo, uma pessoa que demonstra em seus comentários muito senso crítico e um bom conhecimento dos assuntos em que discorre. Transcrevo a declaração e a pergunta feita pelo referido leitor que considero importante para compartilhar.
Paulo Araújo disse...
Caro,
Esclareça-me, se possível, uma dúvida. Por que todos estão falando em Acordo se o que de fato foi gerado em Teerã é uma Declaração? Seria possível, em termos estritamente diplomáticos, que os três países assinassem um documento com a estrutura formal de um Acordo? Se era possível, por que assinaram uma Declaração?
A imprensa daqui e de fora continua chamando a Declaração de Acordo. Eu penso que é um erro grosseiro. Bastaria apenas ler com a devida atenção o documento. A Declaração assinada é uma carta de intenções.
No texto a palavra "declaração" aparece quatro vezes para não deixar dúvida sobre a espécie de documento.
Para efeito de classificação arquivística, as análises diplomática (o exame da estrutura formal do documento legal ou administrativo) e tipológica de documentos antigos e atuais distinguem em nível formal e hierárquico as espécies documentais Declaração e Acordo:
DECLARAÇÃO - documento diplomático ou não, segundo sua solenidade, enunciativo, descendente. Manifestação de opinião, conceito, resolução ou observação, passada por pessoa física ou por um colegiado.
Protocolo inicial: a palavra Declaração. Nome e titulação do declarante. A corroboração ou cláusulas de vigência.
Protocolo final: datas tópica e cronológica, assinaturas (da autoridade emitente e da precação que, no caso do decreto executivo, é dada pelo ministro ou secretário da pasta que tenha relação com o assunto do decreto).
ACORDO - documento diplomático normativo, pactual, horizontal. Ajuste ou pacto realizados por duas ou mais pessoas, físicas ou jurídicas, em torno de um interesse comum, ou para resolver uma pendência, demanda ou conflito.
Protocolo inicial: “Pelo presente acordo de... celebrado entre...” Segue-se o nome das pessoas pactuantes e suas qualificações.
Texto: “fica estipulado...” Segue-se o motivo do acordo. “E como as partes estão de acordo firmam o presente acordo”.
Protocolo final: datas tópica e cronológica, assinaturas dos pactuantes e das testemunhas (conforme o caso, não obrigatórias). (Glossário de espécies documentais elaborado por Helena L. Belloto)
Isso não é frescura. Trata-se da estrutura formal do documento, que é escolhido em função do que e como os signatários querem enunciar. Eu pensava que não haveria o mínimo sentido os três países assinarem um Acordo, pois os termos somente seriam válidos (teriam caráter normativo) se o Acordo estiver assinado pelo governo do Irã e pela AIEA. Mas aqui todos falam em Acordo como se não houvesse a distinção.
Minha pergunta é bem objetiva. Não sei se estou certo, mas eu penso que a escolha pela estrutura formal da Declaração não foi aleatória por que na diplomacia nada é aleatório. A escolha pela forma da Declaração tem uma razão de ser nos diplomas (documentos oficiais) assinados por países.
Por que o ministro Celso Amorim, entre outros, fala tanto em Acordo se de fato o que foi assinado é uma Declaração? Isto é, é normal e esperado que o governo e seus apoiadores soltem foguetes e batam o bumbo. Porém, se pretendiam passar ao público a mensagem "um Acordo foi fechado pelos três países”, por que raios não assinaram um Acordo de fato e sim preferiram assinar uma Declaração? Claro que para efeito dos meios de comunicação de massa a palavra "acordo" é muito mais impactante.
No link abaixo a entrevista de Celso Amorim na qual ele repete várias vezes a palavra “acordo” e omite a palavra “declaração”: http://blog.planalto.gov.br/entrevista-com-celso-amorim-persuasao-foi-mais-eficiente-do-que-a-pressao/
De certo modo eu já havia tratado o entendimento alcançado como uma declaração de intenções por que até onde li faltam compromissos objetivos sobre o principal da questão que é a natureza do programa nuclear iraniano, o que coloco acima são indagações que deixo a vocês, que mais uma vez nos mostram a complexidade que é analisar as coisas internacionais.
Espero ainda os desdobramentos para tratar da completa desconsideração da declaração por parte de várias potências (leia-se os cinco membros com poder de veto do CS [P5] + Alemanha), algo que de certo modo já abordei no texto publicado nessa quarta.
Comentários
Sim, essas análises sao sempre complexas, mas sinceramente é isso que mais adoro nas, como vc mesmo diz, "coisas internacionais". RI é lindo! =)
Abraços!!