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Ler, Refletir e Pensar

Nessa semana não recebi nenhum e-mail com dúvidas, mas como domingo tornou-se o dia de conselhos dessa natureza para os que desejam entrar no campo das relações internacionais decidi republicar esse texto que foi ao originalmente postado no dia 20 de março desse ano. Link para o original (aqui).

Recomendo, também, devido aos recentes acontecimentos que dominam a agenda e o noticiário internacional a leitura de um texto meu recente chamado: “A quem interessa o sangue?" que trata da questão hondurenha que teve uma versão revisada publicada no Portal Mondo Post, Relações Internacionais de Verdade! (aqui) na semana que passou. É um texto que os leitores habituais do blog já o viram aqui, mas quem não leu, passe lá o Mondo Post é um portal que abriga múltiplas visões e conta ainda com um excelente fórum de debates cujo link é encontrado aqui na coluna a sua direita.

Vamos ao texto.


Passaporte ou Cartão da Biblioteca?

Quando ainda me encontrava no turbilhão da graduação vivendo intensamente a vida acadêmica e a vida social típica dos tempos universitários, era comum me deparar com a onipresente afirmação: “Relações Internacionais é bom por que você viaja o mundo, né?!”. Existe uma associação tácita entre relações internacionais e glamour. Imaginam logo grandes reuniões, convescotes em salões acarpetados, coquetéis grandiosos, acho que os meus interlocutores até conseguiam sentir o paladar de canapés exóticos e ouvir o titilar de taças e um quarteto de cordas, como numa cena tirada de um folhetim televisivo. Sentia uma dose de inveja emanando deles ao pensarem que por força da minha formação acadêmica estaria eu destinado a uma vida nômade pelos mais vistosos e imponentes aeroportos do mundo.

A vida de profissional das relações internacionais, embora, seja pontuada por momentos que quase correspondem a essa romântica (e tanto utópica) visão da carreira. Está longe de ser uma vida glamour.

Tive a oportunidade graças, primeiramente, a meus pais e ao curso de conhecer outros países e imergir em outras culturas. É claro, que por força da juventude, da inexperiência e da natureza dessas viagens muitas são as histórias de gafes culturais, surpresas e perplexidades.

Algumas questões, contudo, permanecem. É fundamental na formação de um internacionalista que ele se aventure por outros países? E, mais até que ponto uma incursão turística ajuda a decodificar um país, a entendê-lo?

Começando pela segunda inquietação sou obrigado a refletir sob minha experiência pessoal, portanto não sei até que ponto podem ser universalizadas as conclusões que chegarei. É verdade que viajar imprime na memória gostos, texturas, odores, sons. Que sabemos são armazenados numa parte afetiva do cérebro e sempre nos invocam as sensações que sentíamos quando os vivenciamos pela primeira vez.

Conversar com as pessoas (quando é possível romper as barreiras lingüísticas) é um exercício fascinante, desde os maneirismos que podemos identificar em quase todo um povo, quanto os mais regionais que identificam uma cidade em especial. Para o internacionalista é curioso, também, ver como a pessoa comum, o taxista, o balconista percebem seu país e sua Política Externa. Mais valioso obviamente é o contato com pesquisadores e estudiosos locais, que nos apresentam novas fontes, novos autores, novas visões.

Ao andar pelas ruas de um país estranho pela primeira vez é como se por alguns segundos recobrássemos o olhar atento e a vontade de vivenciar tudo pela primeira vez que tínhamos na mais tenra infância. Observamos prédios, paisagens, placas publicitárias, observamos as relações sociais notamos as diferenças e as similaridades. Eu pelo menos me fascino com a vida cotidiana da cidade, com o ordinário.

Há uma limitação inerente nesse tipo de experiência, somos levados a tomar a nossa vivência nessas terras e nossas interações com os locais que encontramos como a realidade daquele determinado país. E ai abrimos a porta a juízos temerários e preconceitos que tornam qualquer generalização a partir dessa experiência uma afirmação fortemente contaminada, que pode em ultimo caso interferir em nossas atividades profissionais negativamente.

Persiste a questão será que existe a necessidade de que a formação de um internacionalista, necessariamente, inclua temporadas de imersão cultural? Bom, a resposta não poderia ser mais em cima do muro, depende.

Depende da natureza da ida ao exterior e do tipo de trabalho desenvolvido. Por exemplo, se alguém vai para fazer um intercâmbio universitário é claro que a viagem enriquece a vida acadêmica por permitir acesso a fontes, professores entre outras coisas que esse estudante (não importa o nível, se graduação ou pós) não teria de outro jeito.

Já a viagem meramente turística pode ter apelo anedótico ajudando ao analista de modo indireto.

É a meu ver fundamental na formação e no exercício profissional na seara das relações internacionais o amor pela leitura, pela pesquisa, pela biblioteca e pelas livrarias. Lembro da alocução do Patrono da minha turma de formatura, Dr. Paulo Roberto de Almeida, entre os conselhos que o ‘velho contrarianista’ nos dava estava:

“[...] contrariem o desejo, ainda que compreensível, de aposentar os livros e deixar os estudos de lado, agora que vocês têm um canudo na mão e algumas idéias na cabeça. Ao contrário, sejam opositores sistemáticos da aposentadoria precoce nos estudos, e voltem imediatamente às leituras, às bibliotecas, às livrarias, às pesquisas de internet.

Não parem de estudar, em nenhum momento da vida. Aliás, comecem a fazê-lo imediatamente, assim que saírem daqui. Afinal de contas, até agora, vocês fizeram, em grande medida, aquilo que os professores determinaram que vocês fizessem, com uma série de leituras chatas e outras tantas obrigações impostas.

Neste momento, cabe a vocês mesmos imporem a si mesmos um programa sistemático de estudos e de leituras que melhor se conformar às habilidades, gostos e orientações particulares de cada um. Sejam, portanto, contrários ao estudo dirigido e estabeleçam, vocês mesmos, um plano regular de dedicação à formação metódica da especialidade que vocês pretendem ter na vida. [...] Por isso, mãos à obra: coloquem o canudo de lado e comecem a estudar de novo.”

Nos livros, nas revistas cientificas nós encontramos as ferramentas teóricas e conceituais que nos permitem decodificar o mundo. Nos livros encontramos o conhecimento acumulado da humanidade e podemos nos firmar nos ombros de gigantes.

Portanto, se obrigado a escolher entre o passaporte e o cartão da biblioteca. Mesmo sendo um apaixonado ‘cidadão do mundo’, um turista entusiasta, um desbravador. Escolheria mil vezes, fosse preciso, o cartão da biblioteca, passaporte para um mundo de saber incomensurável.”

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