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Política Externa Brasileira: Discurso, prática e caminhos para futuras análises (parte – II)

Continuando a discussão iniciada aqui.


Discurso e prática

Assim, vemos que parte do discurso levado a cabo pelo Itamaraty em vários momentos visa o prestigio do Brasil, contudo, como construir esse discurso, nesse sentido temos uma amostra de como é gestado isso no discurso de posse de Celso Amorim a frente da chancelaria que reproduzo alguns trechos abaixo:

“Coerentemente com os anseios da manifestados nas urnas, o Brasil terá uma política externa voltada para o desenvolvimento e para a paz, que buscará reduzir o hiato entre nações ricas e pobres, e promover a igualdade entre os povos e a democratização efetiva do sistema internacional. Uma política externa que seja um elemento essencial do esforço de todos os para melhorar as condições de vida de nosso povo e esteja embasada nos mesmos princípios éticos, humanistas e de justiça social que estarão presentes em todas as ações do governo Lula”

“[...] Temos de levar essa postura de ativismo responsável e confiante ao plano das relações externas. Não fugiremos de um protagonismo engajado, sempre que for necessário, na defesa do interesse nacional e dos valores que nos inspiram. [...] precisamos traduzir de forma persistente, nossos interesses e valores em pontos da agenda internacional.”*

Esses trechos, por sinal, todo o discurso versa sobre a parte ideal da projeção, falando reiteradamente em valores sem, contudo clarear o que seriam exatamente esses valores. Esse tipo de linguagem cifrada e paradoxalmente clara é típica dos diplomatas, já que compromissos claramente assumidos devem ser cumpridos “pacta sunt servanda” diriam os mais afeitos ao linguajar do direito internacional.

Contudo, existem expectativas quanto aos valores que o Brasil deve projetar e defender no cenário internacional essa expectativa se gera, em via institucional pela força das idéias dos formuladores do Itamaraty, funcionários de carreira, o que significa que há expectativa de linhas de continuidade, também na via institucional temos os valores que são descritos na constituição como norteadores perpétuos da política externa brasileira. Geram expectativas, também, as restrições sistêmicas advindas dos compromissos assumidos em organismos internacionais que constrangem a geração e a execução da política externa. A história de ditadura e redemocratização pacifica e negociada no Brasil, é claro, constrói a noção e a expectativa quanto às ações internacionais. E não podemos esquecer que o nível pessoal dos tomadores de decisão e suas biografias, também, pesam nessa formação de expectativa.

Nesse sentido se esperava do Brasil, sob o Governo Lula, a simpatia e sincronia com governos de esquerda pelo próprio perfil do presidente e de sua equipe e um compromisso com a agenda humanista, que inclui direitos humanos, o que pode ser muito espinhoso em termos internacionais.

E essas expectativas são alimentadas pelos discursos, “sindicais” diria do Presidente Lula sempre que em fóruns internacionais acenando com grandes e belas propostas, como as citações do Chanceler Amorim acima já denotam.

Mas, como dizem o diabo está nos detalhes, e também a práxis da política externa e desse hiato entre prática e discurso surgem duas frentes de contestação a inserção internacional sob o signo do petismo, a primeira de caráter mais esquerdista que advêm da não consubstanciação de rompimentos radicais, sonhados pelos mais entusiasmados e inocentes ativistas que esperavam, um ativismo ainda maior, a lá Chávez. A segunda vertente nasce dos que crêem que o excesso de politização do discurso em política externa, um vangloreio midiático incompatível com os resultados e da ideologização excessiva de relações de Estado, tem minado as bases de prestigio e colocado o Brasil em caminhos morais incompatíveis com os valores da democracia.

Como vemos o pragmatismo do Itamaraty nem sempre é motivado pelo desejo de conciliar os interesses do Estado e do governo (idealmente em favor do primeiro), muitas vezes o que se diz ser pragmatismo é na verdade disfarce para escolhas morais feitas a luz da ideologia ou de frios cálculos de benefícios, tais como votos e apoio a aspirações da chancelaria.

Um exemplo disso é a questão do Sri Lanka, e a postura que o Itamaraty tomou completamente incompatível com um país que já viveu as mazelas de uma ditadura, isso é motivo de eterna estranheza sempre que o Brasil se alinha a Estados autocráticos, sim a relação entre os estados se baseia no interesse, contudo, há limites a isso já que a opinião pública, não pode ser ignorada como componente na formação de uma política externa.

Considerações finais

Os requisitos da ciência de coerência exigem do analista internacional a busca pela neutralidade frente ao objeto de análise, isso exige é óbvio que se faça a análise com base na literatura, e nos fatos buscando pela cientificidade, embora seja em certos momentos impossível, separar as idiossincrasias do analista de sua análise.

E aqui vai um ‘mea culpa’, sobre as análises que faço da política externa brasileira que são sim, e não nego, até enfatizo nos textos carregados de impressões pessoais, mas não menos embasadas no conhecimento adquirido nos livros. Estou querendo dizer que não sou completamente imparcial aqui, mesmo por que, ensaios não são textos acadêmicos.

Por muitos dos motivos expostos acima sou crítico da atuação externa do Brasil, principalmente, quando se posiciona ideologicamente sem disso receber benefícios concretos, além claro de declarações lamentáveis e realmente não necessárias do Presidente Lula, que polarizam o país a partir de assuntos externos e alheios como a questão Israel-Palestina, ou metáforas futebolísticas sobre as eleições no Irã, um absurdo diante da fatalidade confirmada nos tumultos dos que contestam a lisura da eleição, ou quando tenta racializar questões econômicas, acusando um grupo étnico especifico de ser culpado pela crise (não seria racismo?). Sem falar nos constantes desafios de aliados alimentados por aquele país que “há democracia até demais”.

A política externa comporta um certo nível de cinismo, de pragmatismo, principalmente se isso beneficia o interesse nacional, o problema é quando não se tem certeza que o que motiva as ações são os interesses nacionais, ou interesses ideológicos. E para conseguir vislumbrar essas nuances se faz necessário ter critérios analíticos que permitam categorizar as ações e compreender suas motivações, para esse intento creio que conceitos são mais úteis que teorias, como defende Sombra Saraiva, principalmente deve-se estar atento a significação que cada palavra carrega, não só a definição de dicionário, mas o peso político, psicológico e ideológico dessas palavras e gestos.

Exemplo, receber o Presidente do Irã não significa subscrever suas teses consideradas preconceituosas, mas no contexto de isolamento do Irã, recebê-lo significa apoiá-lo, não importa as censuras que sejam emitidas pelo Itamaraty. E isso pode trazer para o Brasil, disputas ideológicas e religiosas que são alienígenas a nossa sociedade.

Esse assunto será obviamente ainda muito abordado, como vocês sabem, nem esse texto é o primeiro que toco nesse assunto, nem nos assuntos meta-teóricos. Muitos querem apenas opiniões inflamadas, mas como digo reiteradamente, tenho respeito e devoção pela minha ciência e decoro com minha profissão. Ou seja, nem só de sensacionalismo vive a blogsfera.
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*AMORIM, Celso. Discurso de posse como Ministro de Estado das Relações Exteriores in BRASIL. Proposta de mudança: Discursos de posse dos Ministros de Estado do governo Presidente Luíz Inácio Lula da Silva. Ipri/Funag, Brasília, 2003. pp 41-51.

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