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O mecanismo de solução de controvérsias da OMC

Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (Dispute Settlement Understanding - DSU)

O Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias (Understanding on Rules and Procedures Governing the Settlement of Disputes - DSU) faz parte integrante da Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT e institui a Organização Mundial do Comércio.[1] As controvérsias que estão submetidas ao crivo do Dispute Settlement Understanding - DSU são as referentes aos acordos relacionados no Apêndice 1 [2], bem como as especificações do Apêndice 2. Enfim, cobre todos os Acordos da Rodada Uruguai. As regras e procedimentos do DSU se aplicam igualmente às consultas e solução de controvérsias entre os Estados Membros relativamente a seus direitos ou obrigações ao amparo do Acordo Constitutivo da OMC.

Como elemento histórico cumpre observar o relato do representante australiano na Rodada Uruguai, Palitha T.B. KOHONA (1994 ), asseverando que:

As longas negociações que resultaram no DSU envolveram contrapesos significativos de interesses entre concorrência política, econômica e pressão social de grupos, e a experiência advinda do procedimento de solução de controvérsias do GATT em mais de quatro décadas. É um outro desenvolvimento maior na evolução completa da estrutura da solução de disputas no campo do comércio internacional. O DSU, que expandiu adiante o procedimento de solução de disputas do GATT, incorporando um número de características que não existiam nos Melhoramentos das Regras e Procedimentos de Solução de Disputas do GATT/1989 e que foi desenvolvido pelo Secretariado do GATT (tradução livre).

Acentua, ainda, o mencionado autor, que uma das características principais do DSU é ressaltar a tendência de que a solução de controvérsias comerciais multilaterais é mais legalista, salientando que o procedimento, prevê prazos mais específicos, estabelece que os componentes do Grupo Especial serão pessoas especializadas em direito comercial internacional, institui um Órgão de Apelação integrado por pessoas com reconhecida experiência em direito internacional, comércio internacional e nos assuntos versados nos Acordos Abrangidos no DSU.

Neste sentido preleciona LAFER(1996) que o sistema de solução de controvérsias da OMC foi concebido para ser um mecanismo rule oriented, que procura domesticar as “razões de estado” power oriented.

Impende observar, ademais, que a proposta de novas regras a pautar os procedimentos de solução de disputas foi resultado da experiência do antigo GATT. A grandes inovações do novo sistema quando confrontado com o antigo estão na impossibilidade de obstrução unilateral de instituição de um painel ou o bloqueio na adoção do relatório, sem mencionar, ainda, o tempo transcorrido para chegar à conclusão de um relatório (LAFER 1996).

Todos estes fatores (prazos, inconsistências, incertezas e cumprimento inadequado do relatório conclusivo expendido pelo painel) contribuíram e conscientizaram os redatores do DSU de que o novo procedimento de solução de disputas teria que responder às necessidades contemporâneas e endereçadas aos problemas apresentados no procedimento do sistema de solução de disputas do GATT, bem como teria que levar em conta as dificuldades que envolvem a solução de disputas em questões de comércio internacional (KOHONA, 1994, p 38).

Assim, procurou-se instituir um mecanismo que pudesse ser mais transparente, previsível e consistente e que pudesse escorar a estrutura da regras do comércio criadas pelos negociadores. A estrutura criada pelo novo procedimento objetiva, também, dissuadir certos países de recorrer a medidas unilaterais de comércio, endereçadas às questões do comércio internacional.

O sistema de solução de controvérsias da OMC é elemento essencial para trazer a segurança e previsibilidade ao sistema multilateral de comércio. Os membros reconhecem que este sistema é útil para preservar direitos e obrigações dos Membros dentro dos parâmetros dos acordos abrangidos e para esclarecer as disposições vigentes dos referidos acordos em conformidade com as normas correntes de interpretação do direito internacional público. (Art. 3.2 do DSU)

Órgão de Solução de Controvérsias (Dispute Settlement Body - DSB)

A administração do DSU é outorgada ao Órgão de Solução de Controvérsias (Dispute Settlement Body - DSB) ao qual compete aplicar as normas e procedimentos, bem como as disposições em matéria de consultas e solução de controvérsias dos Acordos Abrangidos, salvo disposição em contrário prevista nestes Acordos. Conseqüentemente o DSB tem competência para estabelecer grupos especiais (panel), acatar relatórios dos grupos especiais e do órgão de apelação, supervisionar a aplicação das decisões e recomendações e autorizar a suspensão de concessões e de outras obrigações determinadas pelos Acordos Abrangidos.

As decisões exaradas pelo DSB serão por consenso, esclarecendo que o consenso é obtido quando nenhum membro presente à reunião do DSB a elas opuser objeções formais.

É o DSB que tem a gestão de todo o sistema. É ele que tem autoridade para estabelecer o Grupo Especial (Panel) e adotar os seus relatórios, assim como o do Órgão de Apelação.

O arcabouço jurídico do antigo GATT consubstanciado no direito aplicado e na jurisprudência é inteiramente preservado, a teor do disposto no artigo 3.1, e que, inclusive, vem sendo citado nos pareceres do DSB, sem com isso, obviamente, afirmar que exista o precedente obrigatório. Neste sentido o artigo 3.1 do DSU estatui que os membros afirmam sua adesão aos princípios de solução de controvérsias aplicados até o momento com base nos artigos XXII e XXIII do GATT 1947 e ao procedimento elaborado e modificado pelo presente instrumento. Deflui-se, portanto, a obrigação de consultar (art. XXII)[3] e o de proteção de concessões e vantagens no caso de uma parte contratante considerar que uma vantagem qualquer resultante para ela, direta ou indiretamente, do Acordo, está sendo anulada ou reduzida, ou que um dos objetivos do acordo está sendo dificultado (art. XXIII).

O DSU procura preservar os direitos e obrigações dos Membros dos Acordos Abrangidos, destacando-os de acordo com as regras costumeiras de interpretação do direito internacional público. Mas o artigo 3.2 deixa claro que as recomendações e decisões do DSB não poderão promover o aumento ou a diminuição dos direitos e obrigações definidos nos Acordos Abrangidos. Assim, fica claro que somente as Partes Contratantes através das negociações podem criar, modificar ou diminuir os direitos do comércio internacional e não por meio de interpretação do DSB.

A referência às normas de interpretação de direito internacional público na implementação do estabelecido nos Acordos Abrangidos contribuem no sentido de acentuar a segurança, a certeza e a previsibilidade do sistema e fornecer base jurídica às decisões do DSB.

Bons Ofícios, Conciliação e Mediação

Segundo o artigo 5.1 do DSU as partes na disputa podem concordar em resolver a controvérsia por meio de bons ofícios, conciliação e mediação. A solicitação de bons ofícios, conciliação ou mediação podem ser efetuadas pelas partes na disputa a qualquer tempo, inclusive quando o Painel estiver em andamento. O objetivo sempre perseguido é o do resultado mutuamente aceitável para as partes na disputa.

Grupo Especial (Panel)

O estabelecimento de um Grupo Especial poderá ser solicitado ao DSB, por escrito indicando se foram realizadas consultas, apontando a matéria em controvérsia e fornecendo uma breve exposição do embasamento legal da reclamação. Competirá ao DSB, por consenso, decidir quanto à instauração do Grupo Especial. Os integrantes do Grupo Especial serão pessoas qualificadas, funcionários governamentais ou não, incluindo aqueles que tenham integrado um grupo especial ou a ele apresentado uma argumentação, que tenham atuado como representante de um membro ou de uma Parte contratante do GATT 1994, ou como representante no Conselho ou Comitê de qualquer Acordo Abrangido, ou que tenha atuado no Secretariado, ou exercido atividade docente ou publicado trabalhos sobre direito ou política comercial internacional, ou que tenha sido alto funcionário na área de política comercial de um dos Membros.

É permitida a participação de terceiros e a pluralidade de Partes Reclamantes, procurando concentrar questões idênticas em um único Grupo Especial, a teor do disposto no artigo 9.3.

Quanto a composição do Grupo Especial. Os membros dos Grupos Especiais deverão ser escolhidos de modo a assegurar a independência dos membros, suficiente diversidade de formação e largo espectro de experiências. Estão impedidos de funcionar nos grupos Especiais os nacionais dos Membros que são parte na controvérsia ou terceiras partes, a menos que as partes acordem diferentemente (Art 8.2 e 8.3 DSU). Os Grupos Especiais serão compostos de 3 ou 5 integrantes. São indicados pelo secretariado do DSB e as Partes não deverão se opor a tais candidaturas, a não ser por motivos imperiosos.(Art. 8.6 DSU). Deverão observar o Código de Conduta estabelecido pelo DSU e as decisões que emitirem serão a título pessoal e não como representantes de governos ou de uma organização.(Art. 8.9 DSU). A função de um Grupo Especial é auxiliar o DSB a desempenhar as obrigações que lhe são atribuídas no DSU e pelos Acordos Abrangidos.

O Grupo Especial deve fazer análise objetiva do assunto que lhe seja submetido, incluindo avaliação objetiva dos fatos, a aplicabilidade e concordância com aos Acordos Abrangidos pertinentes e formular conclusões que auxiliem o DSB a fazer recomendações ou emitir decisões previstas nos acordos abrangidos. Os Grupos Especiais deverão regularmente realizar consultas com as partes envolvidas na controvérsia e propiciar-lhes oportunidade para encontrar solução mútua satisfatória.

Termo de Referência

O Termo de Referência é que delimita a controvérsia e poderá ser redigido juntamente com as Partes, a teor do disposto no artigo 7.3. A exemplo do que ocorre nas arbitragens privadas este instrumento demonstra ser muito importante, tal como o Terms of Reference ou Acta de Missión peculiar ao Regulamento de Arbitragem da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional - CCI e que não se verifica em outras instituições arbitrais.(BOND. 1991. p 14)

Regras Processuais do Grupo Especial

O Grupo Especial estará adstrito ao procedimento previsto nos artigos 12 a 15 do DSU e ao disposto no Apêndice 3, Procedimentos de Trabalho. Nesses dispositivos encontramos as seguintes especificações: calendário de trabalho (Apêndice 3, item 12); aplicação dos princípios do contraditório e da igualdade das partes (artigos 12.4, 12.6 e Apêndice 3, itens 4 e 10); confidencialidade das deliberações e as opiniões pessoais no relatório do Grupo Especial não serão assinadas (artigo 14.3); confidencialidade dos documentos apresentados ao Grupo Especial, mas as Partes não estão impedidas de tornar públicas suas posições (Apêndice 3, item 3); princípio do livre convencimento dos painelistas, podendo formular perguntas, solicitar assessoramento técnico (artigo 13 e Apêndice 3, item 8); terceiros podem expressar suas opiniões (Apêndice 3, item 6).

Digno de nota é o procedimento em que o Grupo Especial inicia sua deliberação. Após a consideração das réplicas e apresentações orais o Grupo Especial distribuirá os capítulos expositivos (fatos e argumentações) de esboço de seu relatório para as partes em controvérsia. Após prazo concedido pelo Grupo Especial as partes oferecerão comentários a respeito, por escrito (Art 15 DSU). Após o mencionado prazo o Grupo Especial distribuirá às partes o relatório provisório, nele incluindo tanto os capítulos descritivos quanto as determinações e conclusões do Grupo Especial e qualquer das partes poderá apresentar por escrito solicitação para que o Grupo Especial reveja aspectos específicos do relatório provisório, antes da distribuição do relatório definitivo aos Membros. A pedido de uma da parte, o Grupo especial poderá reunir-se novamente com as partes para tratar de itens apontados nos comentários escritos. No caso de não serem recebidos comentários das partes, no prazo estipulado, o relatório provisório será considerado relatório final e será prontamente distribuído aos Membros.

As conclusões do relatório final do Grupo Especial incluirão uma análise dos argumentos apresentados pelas partes na etapa intermediária de exame. A apresentação do relatório final não poderá ultrapassar o prazo de nove meses, contados da data de formação do Grupo especial.

Este procedimento de submissão prévia das deliberações do Relatório Provisório desde os tempos dos painéis do GATT vem sofrendo críticas de especialistas. Com efeito, PESCATORE(apud HUNTINGTON, 2003. p 410), juiz da Corte de Justiça das Comunidades Européias (UE) e painelista no GATT, assevera que a revisão intermediária pode constituir intervenção imediata à independência dos painelistas. Pode emitir avisos prévios às partes e permitir que exerçam pressões sobre os membros do Painel. Mais adiante ameniza dizendo que a seleção dos painelistas é efetuada em bases objetivas e de julgamento seguro, o que pode aliviar esse perigo; contudo há ainda o risco da interferência.

A adoção do relatório final fica condicionada à aprovação do DSB, que poderá, por consenso, rejeitá-lo. É franqueado à parte recorrer da decisão para o Órgão de Apelação (artigo 16.4).

Órgão de Apelação (Appellate Body)

A maior alteração incorporada ao DSU é a instituição do Órgão de Apelação, composto por sete membros, sendo que cada turma do Órgão de Apelação será composta por três membros.(Art. 17.1 DSU). Os membros são escolhidos entre pessoas de reconhecida especialidade em direito, comércio internacional e outras matérias estipuladas nos Acordos Abrangidos. As decisões serão adotadas em 60 dias e Órgão de Apelação poderá manter, modificar ou reverter as soluções legais encontradas e as conclusões do Grupo Especial. O relatório final adotado pelo Órgão de Apelação será submetido à aprovação do DSB e aceito incondicionalmente pelas partes na disputa, no prazo de 30 dias em que é editado para os Membros, a menos que o DSB decida, por consenso, não o fazer.



[1] Em vigor no Brasil por força do decreto (de promulgação) nº 1.355, de 30.12. 94, DOU de 31.12.94.

[2] São eles: 1. Acordo Constitutivo da OMC; 2. Acordos Comerciais Multilaterais previstos no Anexo 1A - Acordos Multilaterais sobre o Comércio de Mercadorias. Anexo 1B - Acordo Geral sobre Comércio de Serviços. Anexo 1C - Acordo sobre Aspectos de Direito de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio. Anexo 2 - Entendimento Relativo às Normas e Procedimentos sobre Solução de Controvérsias. 3. Acordos Comerciais Plurilaterais. Anexo 4- Acordo sobre o Comércio de Aeronaves Civis. Acordo sobre Compras Governamentais. Acordo Internacional de Produtos Lácteos. Acordo Internacional de Carne Bovina.

[3]A consulta no Direito Internacional Econômico é uma técnica tanto de elaboração quanto de aplicação de normas. A consulta, na elaboração do direito, leva freqüentemente a normas que têm mais a característica de um standard jurídico do que o da tipificação rígida das condutas, posto que a tipificação não capta a mutabilidade da vida econômica. O standard, por sua vez, pela sua própria natureza, quando aplicado à matéria econômica, enseja mais a uma ”jurisprudência de interesses” do que a uma ”jurisprudência de conceitos” (LAFER, 1996. p. 17).

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